Somos mulheres, somos muitas, somos plurais: dá licença que eu quero falar

por Luana Pantoja Medeiros

Graduada em Letras Língua Portuguesa e Literaturas

pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA.

Pesquisadora nas áreas de Sociolinguística,

Linguagem, Gênero e Relações de Poder,

Poesia e Poética Feminista

https://lattes.cnpq.br/7355733518783146

postado em jul. 2019

            Nosso tempo gerou frutos de uma cultura onde a palavra implica em muitos poderes. O rompimento com o poder da palavra hegemônica, branca, patriarcal e heteronormativa deu origem aos contra discursos e é através dele que podemos ampliar os lugares de fala das nossas pluralidades, enxergarmos as identidades historicamente silenciadas e os saberes tradicionais das culturas e dos diferentes olhares.

            Nesta perspectiva, é que Djamila Ribeiro, filósofa, negra, ativista social e feminista abre a discussão para a importância da pluralidade no feminismo em seu livro intitulado O que é lugar de fala? A filósofa brasileira discute o lugar de fala, naturalmente em um contra discurso, trazendo vozes negras ao centro da narrativa, idealizando intelectuais de grupos historicamente marginalizados assumindo o lugar de sujeitos políticos.

            Para começar a falar sobre o feminismo negro é importante romper com o conceito colonial de que as mulheres negras sempre estiveram em um lugar no feminismo trazendo separações, quando é justamente o contrário. Ao nomear as opressões de raça, classe e gênero, “entende-se a importância de não hierarquizar opressões de não criar, citando Angela Davis, em mulheres negras na construção de uma nova utopia, primazia de uma opressão em relação a outras” (RIBEIRO, 2017, p. 14). O feminismo negro é um grande passo civilizatório para a construção de um novo modelo de sociedade que desenraiza a opressão de raça, fazendo com que esse grupo possa ser visto pela sua produção intelectual, como sujeitos ativos que vêm pensando em resistências e reexistências.

            É extremamente importante para que nós, estudiosas do feminismo, não deixarmos de ver o outro lado da história, de que mulheres negras, há muito tempo vem pensando seus lugares como sujeitos críticos e como essa questão é tão importante para entendermos o termo lugar de fala. Ribeiro escolhe, não aleatoriamente, uma mulher negra para exemplificar a luta dessas mulheres, desde sempre, para serem notadas como sujeitos que produziram discursos contra hegemônicos.

            Sojouner Truth nasceu em um cativeiro em Swartekill, em Nova York, seu nome verdadeiro, Isabella Baumfree, trocara o nome em 1843, tornou-se abolicionista afroamericana, escritora e ativista dos direitos da mulher. Em 1851 participou da Conveção dos Direitos da Mulher em Ohio (EUA) onde apresentou seu discurso mais conhecido denominado  “E eu não sou uma mulher?”

            Em resumo, Trath faz um discurso de improviso, mas notadamente poderoso onde ela problematiza, ainda na primeira onda do feminismo a evidência de um grande dilema que o feminismo hegemônico viria enfrentar.

            Trechos do discurso de Trath (apud RIBEIRO, 2017, p. 20):

 

(...) aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal (...) nunca ninguém me ajudou a subir numa carruagem ou passar por cima da lama! E eu não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e nenhum homem conseguiu me superar! E eu não sou uma mulher? (...)

            Trath se refere à universalização da categoria mulher, a ideia de se perceber as várias possibilidades de ser mulher leva em conta, raça, orientação sexual, identidade de gênero e classe social, no entanto esse debate é acrescentado fortemente a terceira onda do feminismo com a filósofa Judith Butler.

            Acontece, caras companheiras feministas, é que esse assunto já estava sendo levantado por feministas negras, como vimos no discurso de Trath. Então a história de resistência e produção intelectual de mulheres negras é mais antiga do que as produções da terceira onda feminista. Então porque não percebemos? O problema seria a sua falta de visibilidade. A principal pauta no feminismo negro trata de restituir humanidades negadas.  

            Trath também escreveu poemas fazendo críticas as sufragistas, isso em 1851 ela estava a desafiar o modo pelo qual as representações do feminismo estavam sendo concebidas e na prática tentava restituir humanidades negadas. Trath caçoava as roupas das mulheres que estavam à frente do movimento pelo sufrágio feminino em seus poemas, apontando para uma classe social privilegiada.

            Do ponto de vista do olhar colonizador:

Falar a partir das mulheres negras é uma premissa importante do feminismo negro como nos ensina Patrícia Hill Collins sobre a necessidade dessas mulheres se auto definirem, assim como fez Lélia Gonzalez ao evidenciar as experiências de mulheres negras na América Latina e no Caribe. Existe um olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes, produções e, para além de refutar esse olhar é preciso que partamos de outros pontos (...) diz-se a mulher não é pensada a partir de si, mas em comparação ao homem, aquela que não é homem. (RIBEIRO, 2017, p. 35).

            A filósofa francesa Simone de Beauvoir estabelece a categoria do Outro em o Segundo Sexo (1949), sob a perspectiva deste olhar funda a categoria do Outro beauvariano explicando como esta categoria é antiga e comum. Nas mais antigas mitologias e sociedades primitivas já se encontrava presente a dualidade do “Mesmo e do Outro esta divisão não teria sido estabelecida inicialmente tendo como base a divisão dos sexos, pois a alteridade seria uma categoria fundamental do pensamento humano” (RIBEIRO, 2017, p. 36).

            Então nenhuma categoria seria definida sem colocar imediatamente Outra diante de si. Um exemplo temos as categorias do grupo de trabalhadoras rurais: quem não pertence a esta categoria é o Outro, assim como quem não nasce no nosso país é estrangeiro.

            Para Simone de Beauvoir a mulher foi concebida na sociedade como o Outro do homem. Assim são as mulheres negras. Djamila Ribeira cita os estudos de Grada Kilomba onde analisa a categoria do Outro, mulheres negras, por serem nem brancas e nem homens ocupam um lugar muito difícil na sociedade supremacista branca por terem uma espécie de carência dupla. Mulheres negras exerceriam a função de o Outro do Outro.

            No termo foucaltiano, onde discurso é poder e controle, para fazer com que vozes negras sejam vistas como sujeitos políticos criadores de discursos contra hegemônicos é que nasce a necessidade de pensar no lugar de fala de cada um, ou de pensar quem sempre foi autorizado a falar.

            Ainda podemos dizer que é novo o que as reflexões feministas vem fazendo? Não, mas é novo que algumas delas tenham garantido um espaço ao exercício da palavra. E isso vale para todas nós? Não, porque somos muitas, somos diferentes e produzimos discursos diferentes e algumas de nós ocupamos papéis de prestígio nas relações de poder.

            Os movimentos sociais moldaram e deram vozes as mais diversas formas de discursos, grupos sociais têm realizado trabalhos intelectuais importantíssimos para a descolonização dos discursos hegemônicos. Mulheres de países colonizados estão produzindo conhecimento intelectual em toda a América Latina e é excepcional o trabalho do feminismo negro neste quadro.

            Mas ainda precisamos caminhar léguas tiranas para soltar a voz da garganta daquelas que nunca tiveram a oportunidade de serem ouvidas, seja pela sua cor, raça, crença, classe ou identidade cultural.

            No Amazonas temos o exemplo das mulheres ribeirinhas, das benzedeiras, das trabalhadoras rurais, das pescadoras, todas essas que não são em si apenas um repositório de saberes de quem teve oportunidades diferentes das delas, como no caso de frequentar a universidade.

            As comunidades de práticas feministas, a exemplo, ainda ficam no mesmo debate academicista, reproduzindo nomes de grandes teóricas, filósofas, claro sempre muito importante para o desenvolvimento do feminismo no mundo, mas é preciso entender que elas tiveram a permissão de falar, elas tiveram a autorização discursiva.

            O trabalho que Djamila Ribeiro desenvolve neste livro O que é lugar de fala? recorta a realidade no feminismo negro, mas é um convite para percebermos que isso não acontece somente com as mulheres negras, acontece com as outras categorias de mulheres citadas por mim, como as mulheres da floresta, que muitas vezes sentam para ouvir sobre feminismo vindo da boca de outras mulheres que nada tem a ver com a suas identidades e realidades, aí mora o problema, não existe empatia. Precisamos avaliar nossos discursos e restituir humanidades negadas por nós mesmas muitas vezes, pois a fala é humana, e sobre as mulheres que não falam, é porque ainda não tiveram a autorização discursiva para isso.  

            Reconhecer a contradição do feminismo hegemônico é um grande passo, é nosso dever não se acomodar com o lugar de prestígio que algumas de nós conquistamos. É nesse momento que o feminismo passará a ser uma realidade para todas, e para isso não precisamos ser iguais, ao contrário, precisamos reconhecer as nossas diferenças. E enquanto isso não acontecer, o Lugar de Fala estará vazio para muitas de nós, muitas de nós morreremos em vida, caladas, e após a morte seremos esquecidas, e é preciso viver no sentido mais profundo da palavra. Precisamos viver e resistir para existir!

 

Referência

RIBEIRO, Djamila: O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: justificando 2017.

 

 

Ciência Política → Políticas Públicas  → Políticas Públicas de Gênero  → Somos mulheres, somos muitas, somos plurais: dá licença que eu quero falar