Voto no Brasil: democracia ou obrigatoriedade?

Os direitos políticos surgem no momento em que a soberania popular toma o lugar da monarquia absolutista, quando o povo, tomando consciência de sua importância e força e assume seu próprio futuro. Soberania popular significa que a titularidade do poder pertence aos cidadãos. John Locke dizia que o governo não deveria pertencer ao príncipe, mas ao povo, que seria, na verdade, o único soberano. Com a Revolução Francesa, essa ideia disseminou-se pelo mundo, passando em muitos países, a ser o povo o soberano em lugar do rei.

Para José Afonso da Silva (2004), os direitos políticos são “os consistentes na disciplina dos meios necessários ao exercício da soberania popular”, Alexandre de Moraes (2003), por sua vez, conceitua direitos políticos como:

“... O conjunto de regras que disciplina as formas de atuação da soberania popular, conforme preleciona o ‘caput’ do art. 14 da Constituição Federal. São direitos públicos subjetivos que investem o indivíduo no status activae civitatis, permitindo-lhe o exercício concreto da liberdade de participação nos negócios políticos do Estado, de maneira a conferir os atributos da soberania”.

Alexandre de Moraes ensina que o direito de sufrágio é a essência do direito político. Moraes ressalta que os direitos políticos compreendem o direito de sufrágio, como seu núcleo, e este, por sua vez, compreende o direito de voto, o que veremos mais pormenorizadamente nos capítulos seguintes.

O voto é personalíssimo, somente pode ser exercido pessoalmente. É obrigatório e igual para homens e mulheres, entre 18 (dezoito) e 70 (setenta) anos e facultativo entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) e acima de 70 (setenta) anos, havendo inclusive sanção para ausência não justificada. O eleitor pode escolher quem ele bem entender, diante dos candidatos inscritos, ou votar em branco e até mesmo anular seu voto. Para expressar a real intenção do eleitor, o voto deve revestir-se de alguns atributos, tais como eficácia, sinceridade, autenticidade, personalidade e liberdade. Decorre do atributo da liberdade que o voto seja secreto. Decorre da sinceridade, da autenticidade e da eficácia, que o voto seja direto. De todos esses atributos, deveria decorrer a facultatividade do voto.

O conceito jurídico isolado de democracia é considerá-la apenas como um regime em que os governantes são periodicamente escolhidos pelos governados. Porém, esta definição não completa o conceito de democracia, que é mais amplo. A democracia supõe a igualdade e a liberdade, é uma forma de vida social, de coexistência entre indivíduos membros de dada sociedade, é fruto de longa discussão histórica, que não se esgotou, ainda, e que nunca se esgotará.

A democracia é como a liberdade e o próprio direito, pois muitos somente os reconhecem e estimulam depois de violados, durante repressões, ditaduras ou terrorismo. Paulo Bonavides (1999) defende que o povo, melhor do que os juristas e filósofos sabem sentir e compreender a democracia, embora não possa explicá-la com limpidez da razão nem com a solidez das teorizações.

Diante do exposto, podemos conceituar democracia como sendo a soberania popular, de distribuição equitativa de poder, que emana do povo, pelo povo e para o povo, que governa a si mesmo ou elege representantes, através do sufrágio, direto, universal, secreto, facultativo, onde todos devem estar representados, porém prevalecendo a vontade da maioria, desde que não contrarie os princípios da legalidade, igualdade, liberdade e da dignidade da pessoa humana.

A natureza jurídica do voto tem sido objeto de acirrados debates. Sua transformação em facultativo ou sua mantença em obrigatório é muito discutida, seja por juristas, políticos ou o povo em geral. Inicialmente, visto pelo prisma da soberania do povo, o voto é um dever político-social. No Brasil, é obrigatório para maiores de 18 e menores de 70 anos. Djalma Pinto (2003) assevera que essa obrigatoriedade se restringe, todavia, ao comparecimento à sessão eleitoral para a assinatura da folha de votação, não à indicação de um candidato. Já José Afonso da Silva (2004), acredita que o voto obrigatório não existe no Brasil. A respeito disso, José Afonso da Silva (2004) argumenta que: “Convém entender bem o sentido da obrigatoriedade do voto, prevista no citado dispositivo constitucional, para conciliar essa exigência com a concepção da liberdade do voto. Significa apenas que ele deverá comparecer à sua seção eleitoral e depositar sua cédula de votação na urna, assinando a folha individual de votação. Pouco importa se ele votou ou não votou, considerando o voto não o simples depósito da urna, mas a rigor, o chamado voto em branco não é voto.

Mas, com ele, o eleitor cumpre seu dever jurídico, sem cumprir o seu dever social e político, porque não desempenha a função instrumental da soberania popular, que lhe incumbia naquele ato ”. Discordamos de José Afonso da Silva (2004) e Djalma Pinto (2003), em que pese todo o notável saber destes, pois o simples ato de, obrigatoriamente, ter que alistar-se eleitor, comparecer em um dia programado, compulsoriamente, a uma sessão eleitoral para exercer seu dever, somente confirma a tese de que o voto obrigatório é uma realidade no País. O simples fato de dirigir-se até a sessão eleitoral para depositar uma cédula, pouco importando se uma escolha foi ou não efetuada, consiste em afirmar, categoricamente, que o ato de votar é obrigatório tanto quanto a obrigatoriedade de alistar-se eleitor. Ao não escolher um candidato, anulando seu voto ou simplesmente votando em branco, o cidadão efetivamente exercitou o ato de votar; o que ele não fez foi escolher um candidato.

Deixemos claro que, sem o alistamento eleitoral, o indivíduo não se torna um cidadão, não podendo exercer seus direitos políticos. Não poderá votar nem ser votado, não poderá promover ações populares nem oferecer denúncia para fins de impeachment, não pode matricular-se, se maior de 18 anos, em estabelecimento de ensino público ou privado, conforme artigo da Lei n. 6.236/7. O mesmo ocorre se, alistado estiver, deixar de comparecer ao pleito para fazer sua escolha, sem justificar sua falta. Paulo Bonavides (1999) classifica o exercício do voto, pelo lado de sua obrigatoriedade como “dever cívico”, baseado no artigo 48 da Constituição da Itália, encontrando o meio-termo entre o dever moral e o dever jurídico. O primeiro doutrinador que se referiu à função pública subjetiva do voto foi Jellinek. Apesar de obrigatório, a rigor, todo sufrágio é restrito. O sufrágio universal também possui restrições à capacidade dos eleitores, tais como nacionalidade, capacidade mental, serviço militar, idade, etc., porém em menor grau se comparado ao sufrágio restrito propriamente dito.

Vimos que o voto obrigatório é dever político-social e também jurídico. Se somente o comparecimento é obrigatório e não o voto em si, como afirma José Afonso da Silva (2004), isto quer dizer que o cidadão, no caso de não opor sua escolha, porém comparecer à sessão eleitoral estará, sem dúvida alguma, cumprindo seu dever jurídico, mas não estará cumprindo seu dever político-social, este sim podendo gerar graves problemas para um país. O dever político-social não possui qualquer tipo de sanção externa organizada, pois é de índole moral. Moralmente, todos somos responsáveis pelos rumos de um País e seu povo, pois somos nós que construímos este País. O que é passível de sanção é, tão somente, o não comparecimento injustificado à sessão eleitoral. Este dever é mais forte que o próprio dever moral, pois o engloba.

O dever político-social está entre o mero dever moral e o dever jurídico. No sistema facultativo, o voto é visto como um dever político-social, que se não exercido, não pode ser sancionável. O comparecimento ou não às urnas está incluso na ideia de voto, não vislumbramos como separá-los. O ato de votar depende do ato de comparecer às urnas, além de traduzir algum interesse do cidadão em participar da vida do Estado. O voto muitas vezes é exercido sem consciência alguma, e isso é prejudicial para um País em desenvolvimento. O voto em branco e o voto nulo não legitimam nenhum processo. Enganam-se os que assim pensam, e também se enganam os que pensam que o voto obrigatório dá mais autoridade aos eleitos.

O Senador José Fogaça (2002), em comentário sobre o voto facultativo, no Relatório Final sobre a Emenda Constitucional do Senador Sérgio Machado que trata do assunto, matéria esta que discutida longamente no Congresso e aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado, alegou: “Sempre fui adepto do voto obrigatório e mudei radicalmente a minha posição, após o plebiscito que consolidou o presidencialismo no Brasil. Percebi que 95% das pessoas que iam para os locais de votação não tinham clara ideia do que estava votando. Percebi também que quando um cidadão não tem ideia do que está votando, ele prefere manter o conhecido, mesmo que ruim, a votar no desconhecido”. A liberdade é ligada à questão do livre arbítrio, que surgiu com o advento do Cristianismo.

O Professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2003) ensina que o querer deve ser visto em sua intimidade, como opção, donde significará exercer ou não o ato. Essa possibilidade é a garantidora da liberdade, a liberdade instala-se no interior da vontade, esta como opção é livre. Não se pode obrigar alguém a querer. A liberdade é preceito fundamental à igualdade e seu real exercício.. Segundo a concepção do livre arbítrio, Deus criou o homem para ser livre, igual e bom. O homem é que escolhe qual caminho quer seguir, se o reto ou o torto. Nessa concepção, os homens pecam porque querem, erram porque querem e acertam porque querem. Cabe ao homem, e a mais ninguém, decidir seu próprio caminho, seu futuro. Nada acontece sem que Deus saiba ou permita. Tércio Sampaio (2003) indaga: “Se Deus tudo sabe e tudo pode, porque permite que o homem peque?”, e a resposta é simples: “Deus criou a vontade livre, o ‘liberum arbitrium’, permitindo que o homem possa o que quer, mas não obriga que queira o que pode”.

Conclusão:

Isto posto, podemos afirmar que o voto é o poder (faculdade) democrático de mudança, por isso deve ser feito de maneira consciente. Ao defendermos o voto facultativo, alegamos que uma pessoa não quer votar, seja porque simplesmente não quer, ou por ideologia política, religiosa, social ou por revolta com o “status quo”, não deve ser compelida a comparecer à sessão eleitoral.

Diante do conceito formulado de democracia, qual seja, a soberania popular, de distribuição equitativa de poder, que emana do povo, pelo povo e para o povo, que governa a si mesmo ou elege representantes, através do sufrágio, direto, universal, secreto, facultativo, onde todos devem estar representados, porém prevalecendo a vontade da maioria, desde que não contrarie os princípios da legalidade, igualdade, liberdade e da dignidade da pessoa humana, temos que somente a não obrigatoriedade do voto se coaduna com os ditames atuais.

Através do voto o povo escolhe quem deve representá-lo, quem está qualificado para isso, podendo optar por quem realmente garanta o cumprimento de suas reivindicações, da ambição social global e não individual. A mudança do voto está exatamente no próprio voto. O voto é, tecnicamente, o melhor instrumento de mudança social que um país livre e democrático pode possui. É uma conquista da sociedade como um todo. Votar é a maior arma que temos contra a impunidade, a desesperança, o descrédito, a violência, a falta de educação e ensino de qualidade, público e gratuito para todos, a fome, a corrupção, os apadrinhamentos escusos e o subdesenvolvimento.

Deixemos claro que o sufrágio não é meio infalível de determinar capacidade ou probidade. Mas com toda certeza, é o menos defeituoso, eis que verdadeiramente democrático, pois somente temos três modos de escolha de governantes, os três igualmente experimentados por muitas nações: a eleição, a hereditariedade e a força. Concluímos com duas assertivas: cabe à comunidade jurídica, já que o Direito também é um instrumento de mudança social, lutar para mudar o “status quo”, sendo o voto meio importantíssimo de transformação social, pois com ele muda-se a educação e a consciência de um povo, que assim poderá mudar um país inteiro. Por isso, apesar de defendermos claramente a liberdade do ato de votar ou não, somente através do voto mudaremos para melhor a sociedade em que vivemos.

 

Referências:

MORAES, Alexandre. Curso de Direito Constitucional, 13a ed. São Paulo, Atlas, 2003. Pg: 232.

A Revolução Francesa teve início com a tomada da Bastilha em 14 de Julho de 1789, e perdurou até meados de 1799, quando Napoleão Bonaparte toma, então, o poder. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 23a ed. São Paulo, Malheiros, 2004.

BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado, 3a ed. São Paulo, Malheiros, 2000. Pg:191.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 6a ed. Coimbra, Livraria Almeidina, 1993.

 

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texto publicado originalmente através do site Jusbrasil

por Alexis Gabriel Madrigal