O Tolstoismo: uma teoria social fundamentada no amor cristão e na não violência

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em mar. 2019

versão em Espanhol

            O Tolstoismo é um movimento social baseado nas ideias filosóficas e religiosas (sobretudo o cristianismo) do romancista russo Liev Tolstói (1828-1910). Como corrente de pensamento o tolstoismo nasceu no final do século XIX como uma ideologia eminentemente cristã.

            Embora tenha sido um profundo adepto do cristianismo, Tolstói foi um severo crítico da Igreja Ortodoxa Russa e, por isso, foi excomungado em 1901. Tolstói era crítico de “algumas práticas exercidas pela Igreja tais quais perseguições políticas, intolerância, punições capitais e consentimento de guerras” (AZEVEDO NETO; QUEIROZ, 2016, p. 3), que ele acreditava repulsivas e incompatíveis com o cristianismo.

            Dentre as ideias do tolstoismo estão o pacifismo, tolerância religiosa, a não violência e a não resistência em todas as circunstâncias. Também desempenha um papel fundamental nesta doutrina o célebre Sermão da Montanha e ideias cristãs como: o amor ao próximo, amar os inimigos, combater o mal com o bem.

            O tolstoismo não tem uma obra específica que trata do seu corpo doutrinário. Mas se existe uma obra que nos permite compreender as ideias e influências que estão na base do chamado tolstismo, esta obra é O reino de Deus está em vós, de 1893. É uma obra que reúne as ideias religiosas de Tolstói onde o autor “expõe a ideia de não resistência ao mal, uma maneira de se opor à violência dos governos rompendo um ciclo destrutivo. A sua posição em defesa do pacifismo [...]” (PEREZ; OLIVEIRA; FRUNGILLO, 2014, p. 240), que o fez trocar correspondências com Gandhi e aproximar ambos os pensadores.

 

Breve biografia

            Liev Nicoláievitch Tolstói nasceu em 9 de setembro de 1828. Seu pai era o conde Nikolai Ilitch Tolstói, dono de uma rica propriedade em Iásnaia Poliana e sua mãe era a condessa Maria Tolstáia e princesa Volkônskaia, título herdado desde o seu nascimento. Ao herdar a fortuna de seus pais Tolstói recebeu também o título de Conde.

            A juventude de Tolstói foi marcada por extravagâncias típicas de homens pertencentes a nobreza russa. Foi militar (comandou uma unidade militar durante a Guerra da Crimeia), latifundiário, apostador compulsivo e um grande sedutor de camponesas.

O escritor recebeu uma formação conforme se esperava de uma família aristocrata russa e a sua juventude também foi similar à de jovens de sua classe, com vícios relacionados ao álcool e ao jogo, além de visitas frequentes a prostíbulos. O arrependimento desses atos juvenis o perseguirão a vida inteira, como ele mesmo deixa transparecer em anotações em seu diário e em cartas, e que refletirão, de um lado, em seu moralismo e conservadorismo e, de outro, em seu desconforto por pertencer à classe social que tanto problematiza (PEREZ; OLIVEIRA; FRUNGILLO, 2014, p. 240).

            A vida de Tolstói foi marcada por intensas crises e conflitos existenciais e, por isso, o aperfeiçoamento moral do indivíduo é um dado muito presente no seu pensamento. O seu maior objetivo nesse aspecto consiste em “viver em paz com Deus e consigo mesmo” (ZWEIG, 1961, p. 21 apud GOMES; FONTENELE, 2018, p. 234). Nogueira Júnior (1996 apud GOMES; FONTENELE, 2018, p. 237) situa esse momento de crise do Conde Tolstói por volta das décadas de 1870 e 1880 que se refletem na sua produção literária, através das obras

Uma confissão (1882), onde descreve seu crescente esforço de organização espiritual; o eloquente ensaio Amo e criado (1894) e, de toda a sua fatura criativa, o maior de seus catalisadores de polêmicas: a diatribe O que é arte? (1898), na qual, em nome de uma estética inspirada na moral, na consciência religiosa e na defesa do nivelamento social, condena quase todas as formas de arte, incluindo as próprias obras.

 

            Sua vida passou por uma reviravolta radical após a maturidade e sobretudo a partir dos 50 anos de idade, quando tenta se redimir do seu passado de extravagâncias e, por isso, alguns estudiosos costumam dividir a vida de Tolstói em um antes e um depois da chamada crise tolstoiana, o que faz sua personalidade “multifacetada: profeta, mujique [denominação dada ao camponês russo], aristocrata, soldado, peregrino, santo” (ROSENFIELD, 2014, p. 2).

            Diante de tais mudanças o estilo de vida do escritor russo muda completamente, defendendo o vegetarianismo, o pacifismo, a fraternidade e solidariedade em relação aos trabalhadores mais pobres. “Inspirado pelos Evangelhos, que exaltavam a pobreza e abnegação, o literato russo chegou a reunir um certo contingente de jovens oriundos da intelligentsia eslava, em sua propriedade rural, dispostos a adotarem os princípios do chamado Tolstoísmo” (AZEVEDO NETO; QUEIROZ, 2016, p. 3).

 

Uma teoria social fundamentada no amor cristão

            Ao se tornar um crítico do modo como a Igreja Ortodoxa conduzia certa questões sociais, como o apoio a guerra, ao mesmo tempo em que prega um evangelho de amor, Tolstói evidencia a forma como enxerga a realidade social e tem consciência dos problemas coletivos. Uma visão carregada de moralismo religioso, que faz dos indivíduos responsavelmente morais pelo modo como suas ações interferem na vida como um todo, baseado em uma convicção de que apenas o aperfeiçoamento moral dos indivíduos é capaz de resolver os grandes e graves problemas da sociedade. “‘Para mudar a ordem do mundo, torna-se necessário que os homens se modifiquem a si mesmos’ (Zweig, 1961, p. 33). Dessa forma, observamos que o que Tolstói propõe inicia-se por uma revolução interior, uma revolução de almas e não de punhos” (GOMES; FONTENELE, 2018, p. 235).

            Na sua visão de mundo cristã, Tolstói considera que não é necessário fazer uso de intermediários entre Deus e os homens (o que explica a perseguição sofrida por parte da Igreja). Deus está no interior de cada homem, portanto, para encontrá-lo, ninguém pode servir de intermediário. O mesmo pode ser dito em relação ao reino de Deus: O reino de Deus está em vós.

Essa nova forma de pensamento leva Tolstói a procurar a elevação espiritual, entre outros caminhos, através da simplicidade e do contato com os camponeses. Contando com o respaldo de aristocrata e do reconhecimento de seu nome como grande romancista russo – autor de Guerra e Paz e Ana Karenina entre outras obras –, sua doutrina almeja a transformação do homem por meio das elevações moral e espiritual e alcança repercussão mundial (ORNELLAS, 2010a, p. 108 – Ornellas (2010b) também é autora de um artigo sobre a presença do tolstoísmo na literatura brasileira que apresenta algumas ideias do romancista russo sobre a arte).

            No tolstoismo temos uma visão carregada de amor e mansidão, que rejeita qualquer tipo de violência. Os revolucionários que lançam mão da violência “seriam facilmente combatidos pelo Estado, pois ambos operam pelo mesmo meio. Já aqueles que abdicam da violência, apenas se negando a contribuir com a máquina do poder, são muito mais perigosos a qualquer soberano” (RAMUS, 2014, p. 172). Na dissertação de mestrado de Rabello (2009) encontramos algumas correspondência que Tolstói trocou com ninguém menos  que Mahatma Gandhi. Nestas correspondências os dois grandes defensores da não violência falam de suas convicções e de que como compreendem a ideia de não violência. Em uma destas correspondências de 07 de setembro de 1910, Tolstói afirma como a doutrina da não violência é, no fundo, uma doutrina de amor, do amor como aspiração das almas humanas que foi pregado por todos os sábios de todos os cantos da terra: hindus, chineses, hebreus, gregos, romanos. Por isso, “o emprego da violência é incompatível com a lei de amor, lei básica da vida. Enquanto a violência é praticada, sejam quais forem as circunstâncias, admite-se a insuficiência da lei de amor e, por conseguinte, essa mesma lei é negada” (apud RABELLO, 2009, p. 237). A lei de amor está expressa de forma inequívoca na doutrina cristã mas, paradoxalmente, o mundo cristão aceitou a lei de amor e fez uso da violência,

por isso, toda a vida dos povos cristãos está em contradição entre aquilo que eles pregam e entre a base de suas vidas: contradição entre o amor, considerado a lei da vida, e entre a violência, considerada, até mesmo, como imprescindível em todas as suas diferentes formas, tais como o poder dos governantes, os tribunais, os exércitos, reconhecidos e louvados (id., ibidem, p. 237-238).

            No final da carta, Tolstói reconhece a importância do ativismo pacífico de Gandhi, como “o mais importante dentre todos os já realizados ultimamente no mundo, em que participarão, certamente não apenas os povos cristãos, mas povos do mundo todo” (id. ibidem, p. 238). Vale mencionar a este respeito, sobre a aproximação de Tolstói com o hinduísmo, aquela que ficou conhecida como Carta a um hindu. Não foi uma carta dirigida para Gandhi, mas para um outro hindu, Tarak Nath Das, contrário as ideias de não violência e que acreditava que a única forma de libertar a Índia seria através da luta (mais tarde Tarak Nath Das irá se tornar amigo íntimo e colaborador de Ghandi). Esta carta, onde Tolstói inicia citando o livro sagrado dos Vedas e termina citando Krishna, é importante pois nela podemos ver um “verdadeiro tratado de não-violência. Nela, [Tolstói] expõe suas teorias sobre a não-violência e sobre o amor, e tenta, igualmente, alertar os hindus sobre a falta que cometiam  ao renegar sua antiga sabedoria para abraçar o erro do Ocidente” (RABELLO, 2009, p. 241). Foi a partir desta carta que Gandhi passou a conhecer as ideias de Tolstói e começou a se corresponder com o romancista russo.

 

Importância do tolstoismo na política e na educação

            A importância política do tolstoismo e a perseguição sofrida pelo mesmo durante o regime czarista é ressalta por Rosenfield (2014, p. 2):

O tolstoísmo foi perseguido com rigor durante o regime czarista, levando muitos seguidores da doutrina a serem presos e mortos nas prisões do vasto Império Russo. Deve-se destacar que suas atitudes – tanto em sua militância política, quanto em seus escritos filosóficos e literários – foram responsáveis por influenciar decisivamente na tomada de consciência do povo russo de seus profundos problemas sociais e, ao final, pela ruptura com a dinastia da Casa dos Romanov. Por essa razão, no primeiro momento, Tolstói foi considerado o patriarca dos bolcheviques. Tanto ele, quanto seus discípulos tolstoístas, contudo, repudiaram a violência levada a cabo antes, durante e depois da Revolução Russa (ROSENFIELD, 2014, p. 2).

 

Imagem disponível em: ROSENFIELD, 2014, p. 2.

 

            Como pensamento político o tolstoísmo oferece “parâmetros humanísticos essenciais para uma sociedade global que começa a ruir a essencialidade humana em nome do capitalismo” (ORNELLAS, 2010a, p. 108). A exploração das classes subalternas, a escravidão, o advento da industrialização e o consumismo dele subsequente, a exploração humana como um todo, são outros tantos fatores que influenciaram na visão crítica de Tolstói sobre a realidade que, de forma corajosa, passou a denunciar as atrocidades do Estado czarista, originando “inúmeras polêmicas de cunho social, político e humano, tornando seu nome reconhecido e relevado em várias partes do mundo” (ORNELLAS, 2010a, p. 109). Sensível à miséria de boa parte da população russa, Tolstói se dá conta de que o combate à pobreza e à miséria “está para além de uma ação individual, sendo-lhe necessária, portanto, uma mudança que, acentuando-se de modo a ultrapassar as dimensões da filantropia e da caridade, contemplasse toda a ordem social estabelecida” (GOMES; FONTENELE, 2018, p. 235).

            O tolstoismo como doutrina política foi assimilado pelo que se conhece como o anarquismo, mais precisamente um anarquismo de tipo cristão, que não significa anarquia no sentido literal do termo, mas passa a ideia de que os seguidores do anarquismo cristão, influenciados pelo tolstoismo, “defendem o cristianismo primitivo e as primeiras comunidades cristãs, que viviam de forma alheia ao Estado romano, realizando o princípio da ajuda mútua. Avessos à constituição de propriedade, praticavam a divisão de bens e o alimento compartilhado” (RAMUS, 2008, p. 169). Tolstói é considerado, assim, o precursor do anarco-cristianismo, de uma sociedade voltada para o comunismo agrário, baseada no cooperativismo.

            Por fim vale ressaltar algumas palavras sobre o interesse de Tolstói pela educação, uma vez que este interesse está, em parte, ligado diretamente a questão social de eliminar o analfabetismo entre os camponeses russos e, para isso, Tolstói fundou uma escola em sua própria casa, em Iásnaia Poliana e fundou uma revista com o mesmo nome: Revista da Escola Iásnaia Poliana. Nesta revista temos registrados, além de artigos pedagógicos, as experiências de Tolstói como professor e também “textos importantes e críticos sobre a instrução pública na Rússia da época, além de um projeto longo e minucioso para a organização de escolas populares e um exposição detalhada sobre o que foi a escola Iásnaia Poliana entre novembro e dezembro de 1862” (RABELLO, 2009, p. 13).

O romancista russo dedicou-se também a escrever um trabalho sobre alfabetização de crianças, intitulado Cartilha: uma extensa obra de 758 páginas. Tal obra tinha como objetivo fazer com que todas as crianças de qualquer condição social pudessem aprender a ler, escrever e permitir “aos professores guiar os alunos desde o abecedário até a leitura de textos – posteriormente reunidos nos Quatro Livros Russos de Leitura –, cujo grau de dificuldade, assim como a extensão aumentam progressivamente” (RABELLO, 2009, p. 14).

 

 

Referências Bibliográficas

AZEVEDO NETO, Joachin de Melo; QUEIROZ, Mylena de Lima. Ressonâncias do pensamento de Tolstói no jornalismo literário brasileiro (1903-1922). Anais do VI ENLIJE: Literatura e outras artes: reflexões, interfaces e diálogos com o ensino. 2016.

GOMES, Rebeca C. C.; FONTENELE, Laéria. Liev Tolstói: o romancista e o dogmático. Do conflito perene à produção literária. Trivium: Estudos Interdisciplinares, v. 10, n. 2., p. 232-244, jul./dez., 2018. Acesso em 20 fev. 2019.

ORNELLAS, Clara Ávila. Aspectos do tolstoísmo na Literatura Brasileira: Lima Barreto e João Antônio. Fragmentos, n. 38, p. 107-120, jan./jun., 2010a. Acesso em 20 fev. 2019.

ORNELLAS, Clara Ávila. Presença do tolstoísmo na Literatura Brasileira. REVISTA USP, n.85, p. 130-139, mar./mai. 2010b. Acesso em 20 fev. 2019.

PEREZ, Daniela Polizel; OLIVEIRA; Natália Franzoni de; FRUNGILLO, Mário Luiz. A educação na obra de Tolstói: uma questão fundamental. Língua, Literatura e Ensino, v. 9, p. 239-248, dez., 2014. Acesso em 19 fev. 2019.

RABELLO, Belkiss. As Cartilhas e os Livros de leitura de Lev N. Tolstói. Dissertação (Mestrado em Línguas Orientais). Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura Russas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

RAMUS, Gustavo. Anarquismo cristão e sua influência no Brasil. Verve, n. 13, p. 169-183, 2008. Acesso em 19 fev. 2019.

ROSENFIELD, Luis. Tolstói e o Direito: fragmentos de uma relação conflituosa. Boletim da RDL – Rede Brasileira Direito e Literatura, n. 2, p. 1-4, set./out., 2014. Acesso em 19 fev. 2019.

ZWEIG, S. O pensamento vivo de Tolstói. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961.

 

Espiritualidade e Política → O Tolstoismo: uma teoria social fundamentada no amor cristão e na não violência

Na dissertação de mestrado de Rabello (2009) encontram-se algumas traduções de e sobre Tolstói: a tradução do Terceiro Livro de Leitura; do conto literário Aliocha, o Pote; e do relato Com Tolstói, em Iásnaia Poliana (este último de autoria de Paul Boyer).