O Melhor do Brasil
por Liziê Moz Correia
postado em fev. 2018
Contava Chico Buarque, ao cantar o Brasil em seus versos, que "seus filhos erravam cegos pelo continente / levavam pedras feito penitentes / erguendo estranhas catedrais / e um dia, afinal / tinham direito a uma alegria fugaz / uma ofegante epidemia / que se chamava carnaval...". No entanto, nem todos os Franciscos são Chicos em terras tupiniquins. Há quem sustente que o brasileiro não tem direito a seu momento de felicidade - ainda que seja na forma de uma distração breve das dores da vida.
Passado o sábado de "enterro dos ossos", o país deu por encerrada a sua festa mais tradicional - e mais criticada pelos cidadãos que, ostentando uma superioridade deveras questionável, atribuem ao Carnaval um culto às nossas supostas indolência e alienação. Onde já se viu - dizem alguns - fazermos um feriado prolongado até a Quarta-feira de Cinzas para uma comemoração? Aduzem que, enquanto o país está na sarjeta moral e econômica, o povo está se divertindo, alheio aos nossos fracassos. O que teríamos, afinal, para comemorar?
De fato, não é preciso mais do que uma análise superficial para se constatar que temos problemas em todas as áreas. Nossos indicadores sociais não desmentem aquilo que comentamos diariamente na padaria, no mercado, em nossas casas: faltam vagas nos hospitais, nas creches, nas escolas. O ensino é deficiente, a segurança pública é caótica, o dinheiro dos nossos impostos se perde nas valas da corrupção e isso se reflete na precariedade dos nossos serviços públicos. Mas será que todos esses problemas são decorrentes de uma "má índole" do povo brasileiro? Aliás, quem é esta entidade, o povo? Seria uma espécie de massa inerte e indolente, que, imprestável, não consegue mover o país rumo ao desenvolvimento? Creio e sustento que não. Aliás, nada é mais falso e perversamente articulado do que tal ideia. Senão, vejamos.
O Brasil, esta nossa casa portuguesa, foi dividido em 14 capitanias hereditárias em 1534. Desenhou-se, assim, desde os nossos primórdios, um panorama aterrador: uma casta composta por um grupo diminuto - por aqueles a quem o sociólogo Raymundo Faoro, em sua obra imortal, apelidou de "donos do poder" - concentra quase toda a renda do país, deixando migalhas aos "dalits" de baixo. A quem duvida de tal afirmação, é imperioso lembrar que as estatísticas do IBGE não mentem: 50% dos brasileiros vivem com menos de um salário mínimo. 79% dos brasileiros não chegam a receber dois salários mínimos, num contexto em que o valor de R$ 954,00, estabelecido como mínimo, se revela insuficiente para pagar a soma do aluguel com o condomínio mesmo nos subúrbios. Especialistas afirmam que, apenas para fazer frente aos gastos com itens de primeira necessidade, o salário mínimo dos brasileiros deveria ser de R$ 3.752,00. Entretanto, apenas 10% da população do Brasil possui renda mensal que atinge tal patamar. Quem ganha o mínimo, trabalha mais de 100 horas para comprar uma cesta básica. Enquanto isso, a casta dos 1% mais ricos possui rendimento médio 36,3 vezes superior à renda média de metade da população, concentrando mais de um quarto de toda a renda nacional.
Nesse contexto, o poder econômico e o poder político unem forças para a manutenção desta nossa oligarquia mercantilista - e os escândalos de corrupção recentes provam cabalmente isso, afinal, ficamos a saber que as licitações públicas não passam de um jogo de cartas marcadas e que os políticos comem nas mãos de um grupelho de empresários que estão dando de ombros para a livre concorrência e o livre mercado.
Assim, os velhos coronéis que fazem parte de um triste folclore latino-americano se mantêm no poder, dando as cartas e cravando fundo os pilares da cultura do patrimonialismo público - a "minha" escola, o "meu" hospital, o "meu" Estado do Maranhão, o "meu" Estado do Alagoas... Os quais se convertem, na verdade, em perfeita extensão do patrimônio deles: cabides de empregos, latifúndios improdutivos, órgãos públicos inchados e inoperantes. Mas quem se beneficia disso tudo? E quem tem renda suficiente para se manter, com qualidade de vida, não sendo atingido de forma tão atroz por essa vil conjuntura? Apenas 10% dos nossos cidadãos. Sim, os Franciscos que não são Chicos. E esses não representam os brasileiros.
É fácil, numa construção de narrativa simplória, atribuir ao povo pobre a culpa dos nossos problemas. Porém, 90% do povo do nosso país sofre os efeitos da concentração de renda e do patrimonialismo público. É gente que trabalha, sim, e muito! São as pessoas que inundam as nossas ruas às 6h, antes mesmo do sol nascer, e se apinham em transportes coletivos lotados. São as pessoas que vivem na zona norte e acordam ainda na madrugada, para pegar quantas conduções sejam necessárias para levá-las, após duas horas de viagem, ao local de trabalho na zona sul. Ao final das oito horas de expediente, a mesma missa se repete e, à noite, um sono restaurador de umas poucas horas, por vezes, resta prejudicado pelas preocupações com as contas a pagar.
Este brasileiro, que muito dá, pouco recebe. A carga horária de trabalho no Brasil, de 44 horas semanais, é uma das mais elevadas do mundo, superando a de países como EUA, Canadá, Irlanda, Itália, Suécia, Bélgica, Holanda e Japão, por exemplo. Na França, a jornada do trabalhador comum é de 35 horas semanais - quem trabalha por 39 horas recebe, em compensação, duas folgas mensais. Na Alemanha, algumas categorias já conseguiram a redução da carga horária semanal para 28 horas, e pretendem estender tal direito aos demais trabalhadores. Mas, será que descansamos demais? Comparativamente, não. Em 94% dos países que compõem a União Europeia, o período de férias anual é superior a 20 dias úteis - é dizer, não é moda do Brasil o mês de descanso. No mundo todo, as pessoas almejam ter tempo para os seus anseios pessoais em meio a uma vida de labor e cansaço. Parece-me que se trata, tão somente, de um salutar desejo inerente à condição humana. Ou será que merecemos nos tornar animais de tração?
No entanto, diferentemente dos trabalhadores dos mencionados países, 90% da nossa população é mal remunerada pelo trabalho e, com a sua baixa renda, pouco consegue além de sobreviver. Paga a mais elevada carga tributária do mundo, a qual recai, precipuamente, sobre o consumo, penalizando precisamente os mais pobres. E, em contrapartida, recebe péssimos serviços públicos.
Destarte, esta força de viver, a alegria e a afabilidade que caracterizam a nossa gente perante o resto do mundo, deveriam ser as provas maiores da nossa dignidade, da nossa grandeza. Aqui as coisas funcionam mal, aqui se vive com pouco, aqui se trabalha muito, aqui há privações, aqui há escassez. Mas a gente não anda de cara amarrada, não finge que não conhece os vizinhos, bate papo com os vendedores de rua, pergunta para a Dona Maria como é que está o sobrinho dela, que se operou das pedras nos rins. E a gente nem conhece o moço. A Dona Maria, senhorinha simpática, a gente conheceu na feira. Ela chama todo mundo de filho. E, mesmo sendo pobre, se alguém quiser chegar para o almoço, ela põe mais água no feijão. Este é o Brasil, com seu tecido social tão pitoresco, que se explica pelo simples motivo de que, apesar de tudo, o brasileiro não desistiu de viver, de tentar ser feliz.
Há quem diga, porém, que um povo que aceita os desmandos dos governantes e vai festejar, em vez de protestar, não é digno de viver num país decente. Curiosamente, são as mesmas pessoas que passaram o feriado em casa ou na praia. Questiono-me se o país teria mudado caso todos os brasileiros que pularam Carnaval tivessem feito o mesmo. Afinal, permanecer em casa, reclamando durante dias a fio, deve ser uma grande contribuição à nação, não é? Sem embargo, mesmo a tese da passividade dos brasileiros frente ao Poder Público é absolutamente mentirosa. Ao longo de todo o período imperial e início do período republicano, tivemos mais de 90 revoltas e revoluções. Ao longo da vigência do regime autoritário de Getúlio Vargas e do regime militar, tivemos um sem número de manifestações populares contrárias e favoráveis, bem como se deu em episódios como os da campanha das Diretas Já e dos processos de impeachment dos presidentes Collor e Dilma. O povo brasileiro possui a virtude de ser pacífico; jamais, porém, mostrou-se leniente.
Outrossim, sempre considerei curioso o raciocínio de quem afirma que uma festa de alguns dias pode ser alienante, ao passo que demonstra total desconhecimento de uma realidade flagrante e acredita numa narrativa tão pobremente construída. As mesmas pessoas que aduzem que quem festeja o Carnaval é bitolado, creem que as nossas mazelas sociais são decorrentes de mera falta de empenho do povo, chegando, por vezes, a declinar a argumentação de cunho higienista e eugenista que cheira a mofo do século XIX. As raízes socioantropológicas dos nossos problemas, porém, parecem passar despercebidas aos olhos de tais sumidades do saber - as quais tiveram, em sua ampla maioria, acesso à instrução formal de que carecem milhões de brasileiros de baixa renda. Mas... É que alienados são sempre os outros, não é?
Enfim, não posso conceber que o entrave ao nosso desenvolvimento seja aquele que canta, que dança, que sorri, que tem o sacrossanto direito de tentar ser feliz, visto que escolhe, todos os dias, continuar. Ele, que não nasceu em berço de ouro e luta pela vida a cada manhã, decidiu brincar no Carnaval e esquecer da gravidade das sucessivas crises financeiras, dos subempregos, das três conduções para chegar ao local onde labutará por 8 horas pelo dinheirinho contado do pão e do aluguel. Ele enfrenta a dureza da vida todos os dias e, mesmo assim, não põe água no chope de quem está se divertindo. Ele esteve lá, cantando a falta de dinheiro e falta d'água em marchinhas que fazem rir - afinal, não lhe deram o direito de chorar. E ele, o brasileiro, continua sendo o melhor do Brasil.
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