O Fenômeno da Propriedade
por Alexsandro M. Medeiros
lattes.cnpq.br/6947356140810110
postado em jun. 2018
O fenômeno da propriedade privada está presente nas mais influentes discussões filosóficas, desde Platão e Aristóteles, e ganhou novo destaque na modernidade com os filósofos contratualista John Locke e Jean-Jacques Rousseau, além do comunismo de Karl Marx.
A questão da propriedade, objeto de análise e discordância entre Platão e Aristóteles, é retomada pelos filósofos contratualista que, ou viam na propriedade um direito natural (John Locke) ou a origem das desigualdades e dos males sociais (Jean-Jacques Rousseau). Para o filósofo do iluminismo francês o surgimento da propriedade privada deu origem a profundas e nefastas consequências sociais, a ponto do mesmo afirmar que o primeiro homem a cercar um lote de terra e tomá-la como sua propriedade ocasionou um dos maiores males para a sociedade (discurso sobre a origem e os fundamentos...). E Karl Marx, em suas teorias sobre o socialismo, o comunismo e crítica ao capitalismo, defendeu a completa abolição da propriedade privada dos meios de produção, por acreditar que nela está a origem das desigualdades sociais.
A questão da propriedade – embora Ubaldi não use a expressão “propriedade privada”, ele se refere claramente a ideia de propriedade como aquisição de bens –, não passou indiferente ao pensador italiano e isso porque Ubaldi considera a propriedade como base da sociedade e “um fato que interessa sumamente à vida porque representa os meios necessários de sua continuação” (NCTM, 1982, p. 44). Mas o pensador italiano propõe analisar o fenômeno da propriedade além dos preceitos jurídico e moral.
Para Ubaldi a propriedade é uma lei biológica e fundamental, como o trabalho, legitimado pelas próprias leis da vida. “Cada ser, inclusive o animal, considera que a propriedade lhe pertence, ele a conquistou com seu esforço e trabalho, vencendo todos os obstáculos de qualquer natureza, até contra os seus rivais na luta pela vida” (DI, 1995, p. 287).
A crítica a ideia de propriedade deve ser realizada não por ela ser injusta, mas pelo mau uso que é feito dela. Não se pode pretender destruir o princípio da propriedade mas aprimorá-lo, aperfeiçoá-lo. O Comunismo não tem como destruir a propriedade mas isto é impossível. O máximo que ele conseguiu foi fazer com que uma classe política dirigente tomasse o lugar da antiga aristocracia, repetindo os mesmos erros e tomando os defeitos daqueles que substituíram.
Com o aprimoramento da ideia de propriedade o objetivo é “transformar uma propriedade, que no passado era só em favor de um, numa propriedade concebida preponderantemente como função social de utilidade coletiva” (DI, 1995, p. 290).
Analisando o fenômeno da propriedade sob a ótica da evolução (é sempre bom lembrar que a teoria ubaldiana é evolucionista), Ubaldi fala em três fases desse fenômeno (DI, 1995, p. 290-293): 1) a fase da conquista; 2) a fase da legitimação legislativa; e 3) a fase da socialização.
Na primeira fase não há senão guerra e caos e a conquista da propriedade se dá “por qualquer meio e da necessidade da defesa armada contínua para protegê-la” (DI, 1995, p. 290). A propriedade é daquele que dela se apossa e consegue mantê-la, até que outro venha tomá-la.
Na segunda fase, da legitimação legislativa, a propriedade é protegida por um grupo limitado que a conquistou, por isso se tornou seu dono, e defende-a através de um sistema de leis feitas a seu favor. “Assim nasceu o direito romano que, definindo com normas e deste modo regulando a conduta, tornou-se estável. A seguir o regime feudal medieval desembocou no capitalismo burguês” (DI, 1995, p. 290). Essa fase não é a ideal, mas é necessária para se passar da primeira para a terceira fase, ou seja, da fase de luta e caos à fase de ordem para todos, como veremos agora.
A terceira fase se caracteriza pelo fato de que a propriedade não está reservada em favor de uma classe dominante, de um grupo limitado ou privilegiado mas, de toda coletividade sem exclusão de parte. “Ela será mais distribuída no sentido de que cada indivíduo com a vida recebe o direito a possuir o mínimo indispensável para viver, junto com o correspondente dever do trabalho” (DI, 1995, p. 293).
O movimento evolutivo é o responsável por passar e uma fase para outra. Por substituir a liberdade desordenada pela disciplina, o interesse pessoal pela função social da propriedade, de acordo com a teoria da concepção orgânica da sociedade de Ubaldi, no qual domina a lei de colaboração, onde quanto mais evoluído for o indivíduo mais ele tende a unificar-se com seus semelhantes:
a vida se encaminha para a superação das suas formas passadas – baseadas na lei da luta pela seleção do mais forte e individualismo egocêntrico anti-social – e se prepara para a construção de um novo homem social, adequado a viver não mais guerreando no caos, mas como um elemento que forma parte de uma coletividade orgânica (DI, 1995, p. 301).
A posse de bens é necessária à vida e por isso representa um direito. Todavia é preciso considerar o seu abuso, algo comum em nossa sociedade.
Um dos maiores abusos da propriedade e riqueza é o de aproveita-los como meio de luxo e ócio, em vez de cumprir com o dever de utiliza-las como meio para realizar um maior trabalho produtivo, em proveito da sociedade. Eis então que luxo e ócio, em vez de trabalho e produção, representam uma posição invertida, contra a Lei, que reagirá destruindo-a. A posição duradoura não é a da exploração dos outros para vantagem própria, mas aquela na qual quem possui trabalha a favor da utilidade coletiva (DI, 1995, p. 297).
É preciso considerar neste caso como em todos os outros a lei divina, pois, se o homem seguir a Lei de Deus, “esta naturalmente proveria todas as suas necessidades. Essa é a base do fenômeno da Divina Providência, sempre pronta a intervir espontaneamente, apenas nossa conduta lhe permita, pondo-nos nas condições necessárias para que ela possa verificar-se” (NCTM, 1982, p. 45).
A propriedade deve ser vista como resultado do trabalho, do esforço e do mérito. Propriedade, trabalho (é por meio do trabalho que se chega a propriedade), lei do mérito e justiça estão estritamente relacionadas. O mérito como “filho da honestidade, da operosidade e do valor individual” (NCTM, 1982, p. 42).
Contudo, a ignorância humana viola a justiça subjacente ao fenômeno da posse e aí surge a propriedade adquirida através do furto. O desonesto que conquista a propriedade é produto da injustiça. Alguns ladrões podem até chegar a gozar momentaneamente de seus frutos. Todo poder obtido pela violência e toda propriedade obtida pelo furto não passa de ilusão e violação. O homem ignora que “o que mais vale não é possuir, na forma exterior, mas na interior” (NCTM, 1982, p. 45). A mais importante posse é a das riquezas espirituais. A única que não pode ser roubada e que é inseparável da personalidade.
Bastaria seguir a natural lei de Deus para que espontaneamente reinasse a justiça econômica e houvesse o necessário para todos e por si mesmo se verificasse o equilíbrio entre capacidade, mérito, direito e gozo, equilíbrio que a lei quer e o homem com tanta fadiga procura violar (NCTM, 1982, p. 46)
Quem rouba é sempre ladrão. Não importa se rico ou se pobre. Se o rico é ladrão nem por isso se torna lícito roubar dele. O pobre que se torna ladrão se iguala àquele que julga como usurpador. “É inútil que o ladrão procure tornar justo seu furto, acusando de furto quem roubou antes dele. É vã sua desesperada tentativa; belo e bom pretexto para enriquecer comodamente; simples astúcia que pretende dar a entender que se possa roubar honestamente” (NCTM, 1982, p. 35).
Toda propriedade adquirida por meio do furto, cedo ou tarde será destruída. “A propriedade gerada pelo furto nasce enferma de íntimo desequilíbrio e não pode tornar-se sadia e resistente senão gradativamente se livrando dessa moléstia” (NCTM, 1982, p. 42).
Os bens para a manutenção da vida são necessários mas a forma empregada para obtê-los revela o grau de evolução que o homem se encontra. O método utilizado para a aquisição de bens revela o seu biótipo espiritual, seja por meio do furto (o involuído), do trabalho (o administrador) ou da justiça (o espiritualista).
Temos, pois, três tipos humanos, que se revelam no método de aquisição dos bens, a saber: 1) o involuído ou selvagem: concebe apenas a defesa de si mesmo e o sistema do furto; 2) o civilizado: vive em sociedade, administra, organiza; concebe a defesa da família e do Estado e emprega o sistema do trabalho; 3) o evoluído: superou o egoísmo individual do primeiro tipo e o egoísmo coletivo do segundo; o espiritualista, completamente desprendido dos bens materiais; administra-os apenas porque percebe ser essa sua missão e emprega-os somente como instrumento de trabalho para obtenção de objetivos morais; o tipo biológico, que vive conforme a justiça e não aceita bens senão de acordo com a necessidade, as qualidades, o mérito. Neste último caso, o limite e a medida das aquisições não se encontram, como nos dois primeiros; no Código, e não se impõem por meio de sanções punitivas; estão na consciência, espontaneamente inscritos (NCTM, 1982, p. 50-51).
Conceito de Propriedade Orgânico-Colaboracionista e a Função Social da Propriedade
Através da evolução, a forma mental do ser humano, baseada no culto da posse, deve transformar o seu modo de conceber a vida, seu modo de viver e funcionar. Ao entrar em uma fase mais adiantada de evolução, o homem se prepara para compreender a necessidade de existência de um estado orgânico, ou seja, “em passar do atual (ainda vigente) estado ou modo de existir de tipo individualista-separatista a um outro, pelo contrário, de tipo orgânico colaboracionista” (DI, 1995, p. 48).
Nestas novas condições de vida variarão muitos conceitos. Como se passará cada vez mais do conceito de propriedade – exploração egoísta ao de propriedade em função do interesse coletivo, mas do que individual, assim se passará do conceito de autoridade entendida como posição de domínio sempre em vantagem de quem a detém, ao conceito de autoridade entendida como serviço a favor da coletividade e função social. Alterações interiores profundas, de convicções e forma mental, com importantes conseqüências no funcionamento da organização social (DI, 1995, p. 56).
Essa mudança tem implicações diretas no modo de perceber o fenômeno da propriedade. Nesse aspecto, Ubaldi afirma que existe um tendência geral ao fenômeno da socialização, tão propagado pelo comunismo, sendo este “um aspecto da expressão mais ousada, ativa e evidente deste fenômeno, o socialismo, que assalta toda humanidade” (DI, 1995, p. 48). Trata-se “de passar a novas formas de vida, coletiva, inteligentemente organizada, isto é, a um modo de viver mais completo, complexo e perfeito, como é o estado orgânico” (DI, 1995, p. 48).
Neste modelo, o instituto da propriedade, baseada no modelo individualista-separatista, deve ser substituído por um outro modelo menos egoísta e em razão de sua função social, que Ubaldi chama de propriedade orgânico-colaboracionista. O comunismo é um caso extremo de ataque ao instituto da propriedade, para destruí-la definitivamente. Por outro lado, no capitalismo, o instituto da propriedade “é atacada em forma mais moderada, por sucessivas aproximações, não para destruí-la, mas para discipliná-la” (DI, 1995, p. 48).
O comunismo se justifica em função dos abusos que se fizeram, no passado, do instituto da propriedade. “Então, para libertar-se da doença, procura-se matar o enfermo, isto é, combate-se uma instituição que, corrompendo-se, acabou por tornar-se prejudicial” (DI, 1995, p. 48). Para o homem futuro, no entanto, os conceitos de propriedade e riqueza deverão ser vistos de forma diferente, em que o valor
não será medido pelas posses, mas pelas qualidades pessoais e capacidade de produção; não se basearão no poder de bens com o trabalho dos outros, mas no rendimento da habilidade própria e da atividade. Então o indivíduo não valerá por ser proprietário de terras e capitais, mas porque é proprietário de um cérebro, de um conhecimento e consciência e de muita vontade de trabalhar [...] Ele não vale por aquilo que possui, mas pelo que sabe fazer, não pela sua riqueza, mas pelas suas qualidades, não em relação à propriedade, mas em relação ao trabalho e à produção (DI, 1995, p. 50-51).
Esta transformação implica consequências na forma de se perceber o instituto da propriedade, na qual exista “uma propriedade verdadeiramente justa, exclusivamente fruto de trabalho e economia. Esta, em pequena escala, poderá também existir” (DI, 1995, p. 52). Para isso, será necessário chegar a um acordo entre aqueles que possuem e os que não possuem, sob pena de continuarmos, indefinidamente, o ciclo daquele que, não tendo, andará à caça do que tem.
Não estamos aqui tomando partido por nenhum programa político. Isto é só uma constatação imparcial do funcionamento das leis da vida e das inevitáveis conseqüências do tipo de forma mental que dirige o atual animal humano. Dia virá em que o conteúdo do “meu” será diferente, isto é, quando já não será o que possuo como tesouro acumulado, mas sim o que sei fazer, o que que possuo como proprietário da minha própria capacidade de produzir. Neste dia cairão automaticamente as ameaças que hoje pesam sobre a propriedade. Este novo tipo de propriedade será assim inerente à pessoa e ninguém poderá roubar, nem por furto nem por revolução. Os ladrões nunca poderão levar as nossas qualidades pessoais (DI, 1995, p. 52).
Enquanto permanecermos no nível separatista dos que possuem e dos que não possuem, onde a propriedade foi nascida da posse praticada com fins exclusivistas, gerando uma classe de despossuídos e esfomeados, haverá sempre a possibilidade de assalto e guerra.
Referências Bibliográficas
UBALDI, Pietro. A Descida dos Ideais (DI). Tradução de Manuel Emygdio da Silva. 3. ed. Campos dos Goytacazes, RJ: Fraternidade Francisco de Assis, 1995.
____. A Nova Civilização do Terceiro Milênio (NCTM). Tradução de Oscar Paes Leme. 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Pietro Ubaldi, 1982.
Filosofia Política → Filosofia Contemporânea → Pietro Ubaldi → O Fenômeno da Propriedade
Assista aos nossos vídeos sobre Pietro Ubaldi no YouTube
Para a citação das obras de Ubaldi, no texto "O Fenômeno da Propriedade", preferimos utilizar a inicial de suas obras: NCTM (A Nova Civilização do Terceiro Milênio), DI (A Descida dos Ideais).