O Contratualismo de Locke

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em jul. 2020

 

            Considerado um contratualista tal como os filósofos Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, John Locke se distingue de ambos pois a forma como entende a estrutura (estado de natureza, pacto, estado civil) é diversa em vários aspectos.

            O contratualismo é a teoria segundo a qual a sociedade surge a partir de um contrato, uma espécie de acordo estabelecido entre os homens, que faz com que estes abandonem o estado de natureza e se organizem em sociedade.

A grande divergência entre os contratualistas é precisamente no tocante às características de tal ordem, o que os levaria a distintas posições acerca do Estado Político que, num dado momento, os cidadãos acordaram em instituir — do autoritarismo hobbesiano ao democratismo rousseauniano (HORTA, 2004, p. 246).

            O Contratualismo é uma teoria contrária a teoria do direito divino dos reis. Segundo esta teoria, o poder dos reis foi estabelecido diretamente por Deus, ao passo que a teoria contratualista defende que a legitimidade do poder político se baseia em uma convenção estabelecida entre os homens. Locke é contrário não apenas a teoria do direito divino dos reis mas também ao absolutismo político. Locke critica de forma veemente no seu Primeiro Tratado a primeira, defendida por Sir Robert Filmer, que recorre à Providência Divina para estabelecer tal princípio, desde Adão. Deus transferiu seu poder aos homens “e estes, por sua vez, transmitem-no entre si, sempre de acordo com a vontade divina. E, segundo Filmer, o momento inaugural dessa filiação é o dom do mundo a Adão, de quem todos os reis são herdeiros” (NODARI, 1998, p. 102-103).

            Para Filmer, príncipes e reis detinham um poder absoluto por direito divino e aos homens não era dado o poder de escolher seus governantes ou suas formas de governo pois estes já haviam sido determinados pela Providência Divina. Esse poder absoluto tem origem em Adão, a quem Deus deu tal poder sobre todas as criaturas, na tese de Filmer. “Assim, o primeiro governo do mundo foi monárquico e Adão teve o comando sobre todos os povos da terra. Adão foi constituído senhor geral de todas as coisas, o senhor do mundo” (NODARI, 1998, p. 105).

            Locke irá refutar a tese do poder absoluto delegado de forma divina como defendia Filmer e

argumenta que Deus não deu a Adão o poder sobre todas as criaturas [...] Argumentando, a partir de Gn 1, 28, contra Filmer, Locke diz, por um lado, que Deus não deu poder imediato a Adão sobre todos os homens, crianças e todos os de sua espécie, não sendo constituído, então, um monarca por privilégio divino e, por outro lado, que Deus não lhe deu domínio privado sobre todas as criaturas de sua espécie e as inferiores, mas, pelo contrário, deu-o à humanidade em comum (NODARI, 1998, p. 105).

            Locke argumentava que Filmer fazia uma confusão entre as várias espécies de poder e considerava o poder paterno como um poder absoluto, mas absoluto, só há o poder de Deus sobre os homens.

            Se o poder político não tem uma origem divina, ele só pode ser uma convenção estabelecida entre os homens, através de um acordo entre homens livres. É no Segundo Tratado que Locke irá sustentar a tese de que um acordo, dado através de um consentimento expresso aos governantes é a fonte que legitima o poder político: “nem a tradição, nem a força, mas apenas o consentimento [...] O poder político deve sua existência somente ao consentimento do povo, que, como conjunto de indivíduos, decide aderir à vida civil” (NODARI, 1998, p. 109). Mas para entender melhor a teoria contratualista de Locke precisamos entender primeiro o conceito de estado de natureza.

 

O Estado de Natureza

            O estado de natureza era uma teoria muito em voga entre os séculos XVI e XVII na Europa motivado, em parte, pela descoberta do Novo Mundo e seus habitantes. Locke faz algumas referências aos povos das Américas, inclusive o Brasil (saiba mais em: Trechos onde se encontra referência sobre os povos da América nas obras de Hobbes, Locke e Rousseau), onde não havia qualquer governo, viviam em bandos e desfrutavam de sua liberdade natural. Como pondera Silva (2014, p. 183):

As primeiras sociedades cujo modelo na época de Locke eram os habitantes da América tinham governos não absolutos, e seus habitantes viviam em uma espécie de passagem do mundo natural para a sociedade artificial. Isto seria possível porque o dinheiro ainda não havia implantado o fenômeno da apropriação acumulativa.

            Mas isto não significa dizer que os povos das Américas constituíam o estado de natureza a que Locke e os contratualistas se referiam, mas com certeza estes povos estariam mais próximos deste estado do que o europeu. Talvez seja mais exato falar dos homens do período pré-histórico, nômades, que não tinham uma morada fixa e viviam em pequenos grupos familiares (tomamos aqui esta imagem apenas como uma analogia para um melhor entendimento desta concepção, pois a ideia de um estado de natureza consistia muito mais como a descrição de um estado teórico, hipotético, do que um estado real).

            De acordo com tal hipótese, Locke acreditava que antes de viver em sociedade, os homens viviam neste estado de natureza, uma espécie de estado pré-social, que tinha como característica a vida em comunidade mas sem uma autoridade superior que ditasse as normas e as regras de como os homens deveriam agir. “Assim, Locke pressupõe uma condição pré-política, portanto anterior ao Estado, onde os homens são livres e iguais e regulados apenas pela lei de natureza, fazendo valer os seus direitos naturais” (FRANKS, 2007, p. 89).

Prima facie, Locke define o estado de natureza da seguinte maneira: “Para entender o poder político corretamente, e derivá-lo de sua origem, devemos considerar o estado em que todos os homens estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem” (LOCKE, Segundo Tratado, 2005, §4 apud SOUSA, 2018, p. 65)

            A ausência de uma autoridade superior, um juiz comum com autoridade, coloca todos os homens em um estado de natureza, onde não há superior comum para chamar em socorro provocado por eventuais conflitos ou estado de guerra, como dirá Thomas Hobbes.

            Mas Locke não acredita que o estado de guerra hobbesiano (um permanente estado de luta e conflito existente entre os homens) seja uma característica permanente no estado de natureza. Embora Locke concorde quanto a possibilidade de existência de um estado de guerra, este estado de guerra se dá apenas quando se usa a força contra a pessoa de outrem e não existe um superior comum a quem apelar. Para Locke, o estado de natureza é um estado de relativa paz, concórdia e harmonia.

Esta seria a condição natural do homem, uma hipótese não histórica que tenta apresentar as razões que teriam levado o homem a instituir o poder político. A especulação acerca da natureza humana deveria revelar as causas de sua submissão ao poder político numa imaginada origem da sociedade civil e, assim, justificar a união dos homens sob o bastão do poder. Trata-se de um esforço para encontrar as características do homem antes de sua organização social. Não que os autores que utilizaram esse modelo acreditassem na condição natural do homem na história, mas tentam postular como seria a condição do homem na sua própria natureza sem a intervenção de qualquer criação humana, como a própria sociedade política. Existem, assim, dois momentos distintos: o primeiro onde todos os homens seriam livres e iguais por natureza, e o segundo momento, onde os indivíduos teriam decidido livremente por estabelecer um contrato social capaz de instituir o Estado com a finalidade de buscar o bem comum (FRANKS, 2007, p. 89).

            Por que então os homens optam por deixar este estado de natureza e fundar uma sociedade?

[...] a falta de uma lei estabelecida, firmada, conhecida, aceita como padrão de justo e injusto; - a falta de um juiz conhecido e imparcial investido da devida autoridade; - a falta de poder para dar apoio e sustentação à sentença, quando justa, a fim de se proceder à devida execução (NODARI, 1998, p. 116).

            É esta razão que leva os homens a estabelecerem um pacto que será a origem da sociedade, como veremos.

 

O Contrato ou Pacto Social

            Contrário à teoria hobessiana do estado de guerra de todos contra todos como característica do estado de natureza, Locke não vê razão para dizer que o que levou os homens à necessidade de criar um acordo, um pacto entre si, foi a necessidade de garantir a sobrevivência da espécie e evitar as consequências do estado de natureza. Se para os  Hobbes homens firmam entre si um pacto para garantir a sua sobrevivência, para Locke o contrato social é um pacto de consentimento.

          Para Locke o contrato social surge basicamente a partir do consentimento. A partir do momento em que uma determinada comunidade sente a necessidade de administrar as relações sociais, centralizando esta administração em uma figura comum, os membros de tal comunidade chegam a um consenso (consentimento) delegando poderes a um governante que tem por obrigação garantir os direitos individuais já existentes no estado natural como a liberdade, além de assegurar segurança jurídica e o direito à propriedade privada. “Esse primeiro consentimento de formar um único corpo político submetido à vontade da maioria, Locke denomina de pacto original - original contract” (SILVA, 2014, p. 181).

            A relação estado-indivíduo para Locke deve ser baseada em uma relação de consentimento e confiança. É no capítulo VIII do Segundo Tratado que Locke trata desta questão, onde ele defende que o início das sociedades e dos governos tem origem no consentimento,

consentimento entre um grupo de indivíduos com a finalidade de constituir uma comunidade. Assim, “quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por esse ato, logo incorporado e formam um único corpo político, no qual a maioria tem direito de agir e deliberar pelos demais”. Para Locke, uma vez fundada a comunidade civil e a necessidade do corpo político sempre seguir em uma direção, é preciso haver o consentimento da maioria; ou seja, o ato da maioria - the act of the majority passes for the act of the whole – passa a ser compreendido como ato de todos (SILVA, 2014, p. 181).

            O ponto de partida e a verdadeira constituição da sociedade política, como afirma Locke (1994, p. 141 apud HORTA, 2004, p. 250): “não é nada mais que o consentimento de um número qualquer de homens livres, cuja maioria é capaz de se unir e se incorporar em uma tal sociedade. Esta é a única origem possível de todos os governos legais do mundo”. A passagem do estado natural para uma sociedade política

se dá voluntariamente através de um pacto, um consenso que funda a sociedade política. Neste aspecto, a sociedade política passa a ser concebida então como algo artificial, criada pelo homem a um dado momento por determinadas razões como um contrato social, daí a denominação “contratualistas” para distinguir os filósofos adeptos desse modelo (FRANKS, 2007, p. 89).

            Esta é a explicação mais plausível para se entender porque as pessoas renunciariam à liberdade natural característico do estado de natureza e passariam a viver em sociedade delegando poderes a um governante. Uma renúncia na qual todos devem concordar “em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando, com confiança, das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela” (NODARI, 1998, p. 115).

            Há que se considerar que o estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade de bens, da liberdade e até da vida que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros. É neste caso que Locke concorda com Hobbes ao afirmar que o estado de natureza pode degenerar em um estado de guerra. A diferença é que para o primeiro o estado de guerra é apenas possível, enquanto que para o segundo é permanente. Locke concorda com Hobbes apenas no sentido de que é necessário superar os inconvenientes de um possível estado de guerra, levando os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras. Esta é apenas mais uma razão pela qual os homens desejaram a criação da sociedade política: evitar os possíveis inconvenientes de um estado de guerra, uma vez que os riscos de cair neste estado existem. Este risco é possível pois nem todos os homens observam “de forma estrita, a equidade e a justiça, e a fruição da propriedade que possui neste estado é muito insegura e arriscada” (NODARI, 1998, p. 131).

No estado de natureza, existem três inconvenientes que levam os homens a se submeterem ao governo. Primeiro a falta de uma lei civil (...) Um segundo inconveniente do estado natural seria a falta de um juiz imparcial para julgar de acordo com a lei, já que os homens não julgam de forma justa quando estão envolvidos. E, finalmente, falta também a garantia da punição justa através de um poder com força suficiente capaz de executar a sentença, haja vista que no caso de um transgressor mais forte, corre-se o risco de impunidade (FRANKS, 2007, p. 104-105).

            O estado de natureza é uma condição insegura porque não existe uma lei estabelecida, uma norma do que é certo ou errado, ou uma medida para decidir sobre possíveis controvérsias entre os homens. É preciso estabelecer então um acordo, um pacto, pois os direitos naturais estarão melhor protegidos sob a proteção da lei. Um acordo que obrigue a todos a cumprir a lei estabelecida e onde um sujeito não esteja submetido à vontade inconstante, desconhecida e arbitrária de outro sujeito. “O estado civil é substancialmente a criação de uma autoridade superior aos simples indivíduos para a proteção dos direitos naturais fundamentais” (NODARI, 1998, p. 137).

            No estado de natureza há vários inconvenientes que podem ocorrer por vários fatores. Por causa de suas paixões, por exemplo, alguns homens são levados a prejudicar os outros. Além disso, pode ocorrer que alguém descumpra a lei de natureza da qual resulta a necessidade de punição “que tem por objetivo simplesmente reparar o dano sofrido e restabelecer o equilíbrio da sociedade [...] faz-se a necessidade de punição e reparação dos danos causados” (FRANKS, 2007, p. 100). Mas quem poderá ter o direito de punir no estado de natureza? “Na condição natural onde todos são iguais, a todos compete punir o transgressor segundo sua própria razão, pois todos são juízes e executores da lei de natureza. A punição é aberta a todos, mas a reparação só pode beneficiar o prejudicado” (FRANKS, 2007, p. 100-101).

            Outro inconveniente é que também pode acontecer de alguém ser imparcial quando julga uma causa em que esteja envolvido. Essa imparcialidade gera desequilíbrio pois se os homens punem de maneira desproporcional na verdade eles não estão executando a função da punição que é de reparação para que haja a volta à paz e a harmonia. Ocorre então

uma perturbação no sistema de tal forma que ele jamais se restabelece em função da punição desproporcional que, pelo direito de igualdade abre nova querela, desta vez em favor do transgressor punido que terá direito de revide equivalente à parte a mais sofrida injustamente. E assim sucessivamente. Isso provoca a degeneração da condição natural, o que acaba inexoravelmente no estado de guerra (FRANKS, 2007, p. 101).

            Há também os inconvenientes relativos ao direito de propriedade (tanto em sentido amplo quanto em sentido restrito). A falta de uma lei comum positiva gera insegurança no estado de natureza e compromete o uso fruto da propriedade. Mesmo que exista uma lei da natureza, clara e possível de ser conhecida por todos, por meio da razão, contudo os homens podem ser influenciados por seus próprios interesses e ignorar a lei natural. Por isso Silva (2014, p. 185) pondera que “o fim maior que levam os homens a se unirem em sociedade é a conservação de sua propriedade que se encontra ameaçada no estado de natureza”. O estado de natureza carece de um poder para julgar e punir tais transgressões da lei natural.

        Todos esses inconvenientes podem ter como consequência o estado de guerra, um estado de conflitos constantes e sucessivos, do qual somente um poder político instituído pode ser o remédio. “É essa insegurança, portanto, que levam os homens a refugiarem-se sobre as leis estabelecidas por uma dada sociedade, a comporem um governo isolado ao estado natural para a preservação das propriedades, que são direitos naturais” (SILVA, 2014, p. 185).

          Eis como deve ser o contrato para Locke: o contrato social representa o passo do estado de natureza à sociedade civil. Portanto, ao ato de sair do estado em que todos são livres, iguais e independentes, segue-se, por necessidade, a lógica de que a única maneira pela qual alguém abre mão de sua liberdade natural e aceita os grilhões da sociedade civil é através de um acordo com outros homens, para se unir numa comunidade, a fim de garantir uma vida confortável, segura e pacífica (NODARI, 1998, p. 132-133).

 

Poder Executivo e Legislativo

            Na passagem do estado de natureza para o estado civil ocorre a alienação da liberdade natural, ou seja, os homens transferem o poder de liberdade que tinham no estado de natureza (tanto o poder de julgar quanto o poder de executar sentenças de atos considerados equivocados) em favor da sociedade política:

abdicando, nesse sentido, de parte de sua liberdade natural em prol de uma comunidade política regulamentada por uma lei civil, depois se comprometem com a obediência aos juízes imparciais na execução das novas leis positivas (Cf. T2, §§ 129, 130, 131). Vê-se, pois, que Locke está a um passo para a formulação de sua famosa teoria da separação dos poderes em legislativo e executivo (SILVA, 2014, p. 186).

            O Contrato Social dá origem, assim, ao poder executivo (governo) e o primeiro ato ao instituir o Estado é criar o poder legislativo que deve estar nas mãos do povo, caso contrário, será um poder despótico e tirano. Ao governo, ou Estado, cabe a garantia dos direitos naturais individuais por meio da positivação das leis naturais. E a validação das leis naturais cabe ao poder legislativo: “Se na liberdade natural o homem vivia dentro do âmbito da lei de natureza, ou normas dadas pela razão, na liberdade civil, após a instituição do poder político, o homem deve viver pelas leis dadas pelo poder legislativo que garantam a validade das leis naturais” (FRANKS, 2007, p. 104).

            Ao instituir através do consentimento a sociedade, os indivíduos transferem seus direitos naturais para a sociedade onde, o poder de julgar “passa a formar o poder legislativo na sociedade civil. E o poder de castigar dará origem ao poder executivo que executará as sentenças dadas pelo poder legislativo” (FRANKS, 2007, p. 105). A sociedade civil passa a dispor dos poderes legislativo e executivo “com a finalidade do bem comum, a preservação da sociedade. Trata-se de aparatos criados no esforço de garantir a paz e harmonia reinantes no estado natural. A sociedade passa a ter uma obrigação: assegurar o bem de cada um” (FRANKS, 2007, p. 105).

            Além do poder legislativo e do poder executivo, Locke propõe também a existência do poder federativo, subordinado ao executivo, que teria a atribuição de regular as relações exteriores, ou seja, a relação com outras comunidades (saiba mais em: John Locke e os Poderes Fundamentais).

 

Possibilidade de dissolução do governo: direito de resistência ou direito de rebelião

            A discussão sobre a possibilidade de dissolução dos governos está diretamente relacionada com as formas injustas de exercício do poder político. Locke condena pelo menos três tipos de exercício indevido do poder (o poder despótico, a usurpação e a tirania) e considera que, embora a sociedade política tenha se originado através de um ato de consentimento, o gênero humano é constantemente corrompido o que leva também à corrupção do poder.

            Analisando, por exemplo, o caso do poder despótico (despotical power), este “consiste num poder arbitrário que um homem tem sobre outro, para tirar-lhe a vida quando quiser. Ele se configura no efeito da perda do direito à própria vida por se colocar em estado de guerra contra outrem” (SILVA, 2014, p. 192). Apenas os prisioneiros de guerra podem estar sujeitos a um poder despótico, pois os mesmos não fazem parte do pacto e, se o fazem, devem tê-lo de alguma forma violado.

Disso se evidencia que aquele que conquista uma república por meio de uma guerra injusta não poderá, com isso, ter nenhum direito à sujeição e obediência dos conquistados. No entanto, quando a conquista é justa, derivada de uma guerra justa, e o povo conquistado não é incorporado num povo único sob as mesmas leis do povo conquistador, Locke defende que tal conquista permite ao conquistador um poder absoluto sobre a vida daqueles que, por lhe travarem uma guerra injusta, perderam o direito a ele (SILVA, 2014, p. 192).

            Mesmo em casos como este de guerra o poder despótico deve ser limitado, pois o poder que o conquistador tem sobre o conquistado não se estende nem às suas propriedades nem aos seus filhos.

Assim, em uma guerra justa na qual conquistador e conquistado não se tornam uma única nação “os bens dele, que a natureza, desejosa de conservação de toda a humanidade tanto quanto possível, fez pertencer aos filhos para impedir que pereçam, continuem a pertencer-lhes [...]. Pois, embora eu possa matar um ladrão que me assalte na estrada, não posso (mesmo que pareça menos) tomar o dinheiro dele e deixá-lo ir; isso seria um roubo de minha parte [...]. Portanto, o direito de conquista estende-se apenas às vidas daqueles que tomaram parte na guerra e não às suas propriedades, a não ser para reparar eventuais danos causados e cobrir os custos da guerra, resguardando-se, ainda assim, o direito da esposa e dos filhos inocentes” pois a conservação é o direito e regra fundamental da natureza (SILVA, 2014, p. 193).

            Também os filhos dos conquistados jamais poderão ser considerados como posse dos conquistadores.

“a não ser mediante seu consentimento e não tem nenhuma autoridade legítima enquanto a força, e não a escolha, os obrigue à submissão”. Pois, os homens em geral nascem com dois direitos: em primeiro lugar, o direito à liberdade de sua própria pessoa, em segundo lugar, a herdar os bens de seus pais (Cf. T2, §§ 190 e 191). Ora, os descendentes de um povo possuem o direito de herdar os bens de seus ancestrais, a conquista não dá, portanto, direito às vidas dos filhos, nem às propriedades totais dos pais. Nenhum governo pode ter o direito à obediência de um povo que nele não consentiu livremente. Sem isso os homens, sob qualquer governo, não são livres, e sim meros escravos submetidos à força da guerra. Essas considerações Locke defende que estão de acordo como a lei eterna de Deus e da natureza (Ibidem, § 194) (SILVA, 2014, p. 193-194).

            Tal como o poder despótico, a usurpação também é uma espécie de conquista, mas neste caso é uma forma de estabelecer governos através de uma conquista interna “na qual o usurpador não pode jamais ter o direito do seu lado, pois só existe usurpação quando alguém se apodera daquilo que outro tem direito (Ibidem,§ 197)” (SILVA, 2014, p. 194).

            Desta conquista resulta, não raro, a tirania, cujo tema

é abordado por Locke, no capítulo XVIII (Of tyranny). Se a usurpação é o exercício de um poder que outro tem direito, “a tirania é o exercício do poder além do direito, a que ninguém pode ter direito” é o uso do poder político para se retirar vantagens privadas, pessoais. Na seção 200 do Segundo Tratado, Locke faz uma grande citação de um discurso do rei Jaime I que remete ao tirano da seguinte maneira: “um rei que governa num reino estabelecido deixa de ser rei e degenera em tirano tão logo deixa de governar de acordo com suas próprias leis”. O tirano é, portanto, aquele que governa acima das leis (SILVA, 2014, p. 194).

            Um governo que se tornou tirânico ou um governo cujo poder se tornou ilegal por não garantir os direitos fundamentais e que por isso se torna tirânico é incompatível com a sociedade civil. Quando o governo degenera em uma tirania o exercício do poder está “para além do direito, visando o interesse próprio e não o bem público ou comum. Orienta-se pela própria vontade e não pela lei. Busca a satisfação da ambição, da vingança, da cobiça e não a preservação da propriedade do povo” (NODARI, 1998, p. 153).

            Dos casos que não são casos de guerra, como a usurpação e a tirania, ou em qualquer caso que o poder seja exercido de forma despótica (poder arbitrário de um homem sobre outro), emerge naturalmente a questão: “como proceder em virtude do poder arbitrário de outrem? Para Locke é justa a resistência a toda força ilegítima, todas vezes que o governo se ponha em estado de guerra contra seus súditos” (SILVA, 2014, p. 194). Qualquer ato despótico ou ilegal, que se estenda à maioria do povo, nos casos em que as consequências de tais atos ameacem a sociedade política e, com ela, a liberdade e a vida do povo, deve ser combatido.

            Em quais casos se torna possível a dissolução do governo? Sendo os direitos naturais algo que deve ser assegurado pelo Estado, quando isso acontece os cidadãos lhe devem obediência, caso contrário eles tem todo o direito de se rebelar, como o que aconteceu com a Revolução Inglesa do século XVII que pretendeu coibir os abusos do rei instaurando uma monarquia constitucional. O papel do governo restringe-se a tais garantias. Sua função é “mínima”: proteger a propriedade, defender os cidadãos de ataques externos, preservar a ordem pública e garantir que este contrato seja cumprido.

           Para John Locke toda vez que o soberano violasse os direitos naturais, rompendo com o contrato social, caberia a resistência dos indivíduos que teriam a liberdade de entrar em estado de guerra contra o poder instituído a fim de derrubá-lo, derrocá-lo e instaurar um governo justo em seu lugar. A violação dos direitos fundamentais por parte do governo coloca este em estado de guerra contra a sociedade o que confere ao povo a legítima possibilidade de resistência. É o que podemos chamar de direito de resistência ou direito de rebelião. O direito de resistência é uma decorrência do estado de guerra. “Em Locke o direito de resistência é explícito: se o governo não preservar os direitos naturais do cidadão, este poderá romper o pacto de submissão e resistir até as últimas consequências na defesa de seus interesses” (FRANKS, 2007, p. 105).

A tese contratualista lockeana parte do princípio de que o poder e, consequentemente, a legitimidade desse advém e repousa no consentimento mútuo dos pactuantes, cabendo única e exclusivamente a esses decidir sobre quem e como devem governar. Ora, para Locke, tanto o governante quanto a forma de governo estariam submetidos ao jugo dos membros do pacto, cabendo a esses se insurgirem contra os governantes que deixassem de cumprir as funções para as quais fora designado, ou seja, garantir os direitos naturais. No momento em que o governante deixa de garantir os direitos naturais, colocando em risco a condição de igualdade e liberdade entre os indivíduos, esses retornam ao estado de guerra contra o governante, dissolvendo o Estado e proclamando um novo estado de natureza do qual poderia nascer um novo contrato político (SILVA, 2011, p. 131).

            Kritsch (2010, p. 83) assim se expressa sobre o direito de rebelião: “O autor discute o direito de rebelião em face de todas as possibilidades de violação do pacto. Em qualquer dos casos, a rebelião só se justifica pela preservação dos objetivos que levam os homens a viver em sociedade”.

            Se para Locke o estabelecimento do contrato social deve ser baseado em uma relação de consentimento e confiança, se esta confiança por parte do governante for quebrada, agindo por má-fé ou não garantindo os direitos individuais ou naturais, o mesmo deve ser destituído do poder.

           Locke reconhece a doutrina da legitimidade da resistência contra o exercício ilegal do poder, reconhecendo ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer à força para a deposição do governo rebelde. “O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira” (NODARI, 1998, p. 152).

            Não se pode deixar de reconhecer que grandes equívocos possam ser cometidos por parte de governantes, leis erradas e inconvenientes. Muitos dos quais podem até ser tolerados pelo povo. Todavia

quando uma longa série de abusos, prevaricações e ardis, tendendo na mesma direção, torna o propósito visível para o povo, que não pode deixar de perceber a quês está submetido e de ver para onde está indo, não é de estranhar que ele então se levante e trate de depositar o mando em mãos que possam garantir-lhes os fins para os quais o governo foi originariamente constituído (apud SILVA, 2014, p. 196).

            Por isso quando o “poder executivo negligencia e abandona seu cargo, de maneira que as leis já elaboradas não possam ser postas em execução” (apud SILVA, 2014, p. 195) existe a possibilidade de sua dissolução.

            Mas não é apenas o poder executivo que pode ser dissolvido:

[...] quando quer o legislativo, quer o executivo ajam contrariamente ao encargo que lhe fora confiado, ou seja, quando violam as propriedades de seus súditos, motivo da existência da sociedade política (Ibidem,§ 221). Nestes casos, não se trata de usurpação, mas da quebra da confiança (trust) que é o segundo contrato, o de delegação de poder. Pois, “[...] onde as leis não podem ser executadas é como se não houvessem leis, e um governo sem leis é, suponho, um mistério político, inconcebível para a capacidade humana e incompatível com a sociedade humana”. Em tais casos o povo está livre para instituir um novo legislativo, conforme julgar mais adequado à sua segurança e bens (SILVA, 2014, p. 195-196).

            Se o legislativo transgredir a regra fundamental da sociedade e buscar para si um poder absoluto que não garante o direito à vida, as liberdades e propriedades do povo

por tal transgressão ao encargo confiado ele perde o direito que o povo lhe depôs em mãos para fins totalmente opostos revertendo este ao povo, que tem o direito de resgatar sua liberdade original e, pelo estabelecimento de um novo legislativo, de prover à própria segurança e garantia, que é o fim pelo qual vive em sociedade [...] age também contra o encargo a ele confiado quando ou emprega a força, o tesouro e os cargos da sociedade para corromper os representantes e conquistá-los para seus propósitos, ou quando abertamente empenha de antemão os eleitores e prescreve à escolha deles alguém a quem, por meio de solicitações, ameaças, promessas ou de outro modo, conquistou para seus próprios desígnios, e os emprega para eleger os que tenham prometido de antemão em que votar e o que decretar (SILVA, 2014, p. 196).

 

 

Referências Bibliográficas

FRANKS, Ronne. Os Fundamentos da Teoria Política Lockeana: Locke Leitor de Filmer. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade São Judas Tadeu, São Paulo, 2007.

HORTA, José Luiz Borges. Uma breve introdução à filosofia do estado de John Locke. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 90, p. 239–260, jul./dez., 2004. Acesso em: 02 jul. 2020

KRITSCH, Raquel. Liberdade, propriedade, Estado e governo: elementos da teoria política de John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo. Revista Espaço Acadêmico, ano X, n. 115, p. 73-85, dez. 2010. Acesso em: 02 jul. 2020.

NODARI, Paulo César. A emergência do individualismo moderno no pensamento de John Locke. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, 1998.

SILVA, Saulo Henrique S. Robert Filmer e a emergência da Filosofia Liberal. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.

SOUSA, Luiz Henrique da Cruz. A propriedade como direito natural na filosofia política de John Locke: Subjetividade como fundamento de uma teoria da apropriação. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade de Brasília, Brasília-DF, 2018.
 

Sugestões Bibliográficas

FILMER, Robert. Patriarcha and Other Political Works of Sir Robert Filmer (ed.; Peter Laslett). Oxford, Basil Blackwell, 1949.

FILMER, Robert. Patriarcha, or the Natural Power of Kings. Ed. Rafael Gambra. Edicion Bilingue. Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1966.

___. Patriarcha and other writings. Ed. Johann P. Sommerville. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

 

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