Mito da Linha Dividida
Livro VI de A República de Platão. As falas em primeira pessoa são de Sócrates, enquanto as demais são de Glauco e Adimanto, irmãos de Platão. Os números entre parênteses correspondem a referência universal comum nas obras dos filósofos gregos.
(508c)
[O] mundo visível está nas mesmas relações para a vista e as coisas vistas como o bem no mundo inteligível para o entendimento e as coisas percebidas pelo entendimento.
Como assim? perguntou; explica-me isso com mais particularidades.
Como sabes muito bem, continuei, os olhos, quando não os dirigimos para os objetos cujas cores sejam iluminadas pela luz do dia mas pelo clarão da lua, vêem confusamente e se tornam quase cegos, como se carecessem de pureza de visão.
É exatamente como dizes, respondeu.
Mas estou certo de que, quando se voltam para (508d) objetos iluminados pelo sol, vêem distintamente, parecendo que deles mesmos reside a faculdade da visão.
Sem dúvida.
Considera agora a alma sob igual perspectiva; quando se fixa nalgum objeto iluminado pela verdade e pelo ser, imediatamente o percebe e o reconhece, e se revela inteligente; quando, porém, se volta para o que é mesclado de trevas, para o que se forma e desaparece, passa apenas a conjecturar e fica turva, mudando a toda hora de opinião, como se perdesse por completo a inteligência.
Isso mesmo.
(508e) Ora, o que comunica a verdade aos objetos conhecidos e ao sujeito cognoscente a faculdade de conhecer, podes afirmar que é a idéia do bem; é a fonte primitiva do conhecimento e da verdade, tanto quanto estes podem ser conhecidos; mas, por mais belos que sejam ambos, o conhecimento e a verdade, se admitires que muito mais belo é esse outro elemento – a idéia do bem – terás pensado com acerto. Conhecimento e (509a) verdade: assim como há pouco nos foi lícito admitir que a luz e a visão têm analogia com o sol, porém que seria erro identificá-los com ele, agora podemos considerar o conhecimento e a verdade como semelhantes ao bem, sem que nenhum, no entanto, possa ser com ele identificado, pois a natureza do bem deve ser tida em muito maior apreço.
Que maravilha, disse, terá de ser essa beleza que nos anuncias, se produz o conhecimento e a verdade e é ainda mais bela do que ambos. Decerto não te referes ao prazer.
Quieto aí! objetei-lhe; porém considera mais de espaço a sua imagem.
(509b) De que jeito?
No meu modo de ver, o sol, como dirás, não somente empresta às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, como também a geração, o crescimento e a alimentação, muito embora ele mesmo não seja geração.
Como poderia sê-lo?
O mesmo dirás dos objetos conhecidos, que não recebem do bem apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência, conquanto o bem não seja essência, senão algo que excede de muito a essência, em poder e dignidade.
(509c) XX - Rindo às gargalhadas, exclamou Glauco: Ó Apolo! quanta superioridade!
Tu também tens culpa nisso, lhe falei, por me obrigares a dizer o que penso.
Não cortes aí o assunto, respondeu; pelo menos até completares a comparação com o sol, se de fato ficou algo para tratar.
Sem dúvida, lhe disse; deixei de mencionar um mundo de coisas.
Pois não omitas nenhuma, por mais insignificante que pareça.
Receio que tenha de omitir muitas, lhe falei. Contudo, dentro da presente possibilidade, esforçar-me-ei por não cortar de ligeiro coisa nenhuma.
Sim, faze isso mesmo, respondeu.
(509d) Então, comecei, observa que se trata de dois poderes, como dissemos; um reina no gênero e na sede do inteligível; o outro, no mundo visível. Não falo em céu, para não pensares que estou jogando com as palavras, como fazem os sofistas. Mas, decerto, apanhas bem esses dois conceitos: o visível e o inteligível?
Sem dúvida.
Sendo assim, imagina uma linha cortada em duas partes desiguais, a qual dividirás, por tua vez, na mesma proporção: a do gênero visível e a do inteligível. Assim, de acordo com o grau de clareza ou obscuridade de cada (509e) uma, acharás que a primeira seção do domínio do visível consiste em imagens. Dou o nome de imagens, em (510a) primeiro lugar, às sombras; depois, aos simulacros formados na água e na superfície dos corpos opacos, lisos e brilhantes, e a tudo o mais do mesmo gênero, se é que me compreendes.
Compreendo, sem dúvida.
Imagina agora a outra seção, da qual a anterior é simples imagem: os animais à volta de nós, o mundo das plantas e o conjunto de objetos fabricados pelo homem.
Perfeitamente, respondeu.
E não quererás admitir também, continuei, que o gênero visível se subdivide, ainda, de acordo com o critério da verdade e da inverdade e que o objeto da opinião está para o conhecimento na mesma relação em que está a imagem para o original?
(510b) Aceito a distinção.
Considera agora como devemos dividir a seção do inteligível.
Como será?
É o seguinte: numa das subdivisões, a alma, empregando como imagem os objetos imitados da seção anterior, vê-se obrigada a instituir suas pesquisas a partir de hipóteses e sem prosseguir na direção do começo, mas na da conclusão; na outra porção, a alma também parte de hipóteses, para um princípio absoluto, e sem fazer uso de imagens, como no caso anterior, avança apenas com o auxílio de seus próprios conceitos.
Não apanho muito bem, me falou, o sentido do que disseste.
Então, insistamos nesse ponto, respondi. (510c) Compreenderás melhor depois de uma pequena explicação. Estou certo de que sabes como as pessoas que se ocupam com a Geometria, a Aritmética e outras disciplinas do mesmo gênero admitem o par e o ímpar, três espécies de ângulo e tudo quanto se lhe assemelha no terreno especial de seus estudos; e, uma vez apresentadas essas hipóteses como conhecidas de todos, não se sentem na obrigação de justificá-las nem perante eles mesmos, nem perante os outros, por considerarem-nas (510d) evidentes para todo o mundo. Partindo desse ponto, prosseguem em sua exposição até chegarem, com a máxima coerência, à conclusão que tinham em mira desde o começo.
Sim, respondeu; conheço tudo isso.
Como também sabes que eles se servem das figuras visíveis e discorrem a seu respeito, muito embora não pensem nelas, mas nas outras, as formas primitivas com que elas se parecem, e não raciocinam acerca das figuras traçadas, mas do quadrado em si, da diagonal em si (510e) mesma, valendo igual procedimento para as demais figuras. Todas as figuras que eles modelam ou desenham produzem sombras e imagens refletidas na água, e é como imagens que eles as empregam, porém, sempre esforçando-se por alcançar a visão do que só pode ser (511a) percebido pelo pensamento.
Tens razão, falou.
XXI - Era isso o que eu entendia por gênero inteligível, em que a alma, em suas investigações, sem subir nunca ao princípio, por não lhe ser possível sair do domínio das hipóteses, vale-se de imagens tiradas dos objetos do mundo inferior, as quais, em comparação com estes, são geralmente consideradas mais claras e de maior valia.
(511b) Compreendo, disse; refere-te à Geometria e às outras artes irmãs.
Então, compreende também que pela outra divisão do inteligível entendo que somente pode ser apreendido por meio da razão e de sua capacidade dialética, com o emprego de hipóteses, não como princípios, porém hipóteses de verdade, isto é, ponto de apoio e trampolim para alcançar o fundamento primitivo das coisas, que transcende a todas as hipóteses. Alcançado esse princípio juntamente com tudo o que se lhe relaciona, desce à (511c) última conclusão, sem nunca utilizar-se dos dados sensíveis, porém, passando sempre de uma idéia para outra, até terminar numa idéia.
Compreendo, disse, porém não o suficiente; é assunto assaz difícil. De qualquer forma, vejo que pretendes demonstrar que o que é visto por meio do conhecimento da Dialética, no mundo do ser e do inteligível, é mais claro do que o alcançado com o auxílio das denominadas artes e ciências, que têm meras (511d) hipóteses por princípio, muito embora este também seja forçosamente contemplado pelo pensamento, não pelos sentidos. Mas, pelo fato de partirem de hipóteses, os que estudam os objetos da ciência sem nunca subirem a um princípio, parece-te que não chegam a adquirir deles um conhecimento racional, conquanto se nos tornem inteligível por meio de algum princípio geral. Tenho a impressão de que dás o nome dos geômetras e de outros investigadores do mesmo gênero, por ser o entendimento algo intermediário entre a opinião e a razão.
Apanhaste muito bem meu pensamento, lhe falei. Agora, para essas quatro seções admite outras tantas operações do espírito: razão, para a mais elevada; (511e) entendimento, para a que se lhe segue; à terceira atribuirás a fé, e à última a conjectura, e as distribui segundo o critério de que quanto mais participar cada uma delas da verdade, tanto maior evidência alcançará.
Compreendo, disse, e não somente aprovo, como adoto a ordem que aconselhas.
Comentários
O mito da Linha Dividida é uma forma mais elaborada de explicar a Alegoria da Caverna. Platão propõe uma linha dividida em duas seções diferentes e as duas primeiras seções desta linha representam o mundo sensível, o interior da caverna; as duas próximas seções representam o mundo inteligível. “Essas subdivisões correspondem a distintos graus de clareza que vão do mundo sensível ao inteligível” (LAZARINI, 2007, p. 54).
São quatro graus de conhecimento, chamados de eikasia, pistis, dianoia e noesis. Os diferentes graus de conhecimento são aquisições que se obtém através do processo pedagógico. O primeiro modo de conhecimento do mundo é a eikasia: trata-se do domínio da opinião (doxa) que se forma de modo impreciso, incompleto, sem um conhecimento seguro sobre o mundo. O segundo grau é a pistis (crença, convicção): é um conhecimento algo mais elaborado que inclui as ciências naturais como a botânica, a zoologia, biologia etc. Mas é ainda um conhecimento do mundo sensível, mutável, imperfeito, marcado, por isso mesmo, pela imprecisão do conhecimento sensível. É objeto das crenças. Para além do mundo sensível há o mundo inteligível e o primeiro tipo de relação com essa realidade é caracterizado pela matemática, que inclui a aritmética e a geometria. Por certo, porque as figuras geométricas são entes ideais, atingindo um maior nível de abstração, embora esta se dê ainda com alguma relação com o mundo sensível. É ainda um mundo de hipóteses. A dianoia (a faculdade de raciocínio; inteligência discursiva) se exerce sobre as coisas matemáticas e prepara o espírito para o conhecimento das Ideias. A geometria nos prepara para a sabedoria. “Que ninguém entre aqui se não for geômetra” era a inscrição que constava no pórtico da escola fundada por Platão, a Academia. O conhecimento das realidades inteligíveis só é dado pela intuição intelectual (a faculdade da alma denominada noesis ou nous), por meio da qual atingimos o conhecimento verdadeiro das coisas. O mundo das Idéias, o Hiperurânio, só pode ser captado pela parte mais elevada da alma, isto é, pelo intelecto.
Podemos pensar também na divisão entre doxa (correspondente aos dois primeiros níveis) e episteme (correspondente aos dois últimos níveis). “Para deixar claros os quatro graus do conhecimento, Platão (1993, 533e-534a: 350) aborda novamente essa discussão no livro VII, fazendo a distinção entre opinião (doxa) e ciência (episteme)” (LAZARINI, 2007, p. 56).
Inteligível é a esfera do conhecimento que compreende a episteme (ciência) e a dianóia, distinta da esfera da doxa (opinião) que compreende a conjectura e a crença. A única forma de sair do mundo da opinião (doxa) e alcançar a ciência (episteme) é através do método dialético [sobre o método dialético veja o texto: A Teoria das Ideias e a Dialética]. É necessário libertar-se das verdades estabelecidas, despojar-se do que se acredita; antes de se iniciar a caminhada do conhecimento é necessária a etapa da libertação (LAZARINI, 2007, p. 56).
A doxa (opinião) o nível mais baixo de conhecimento onde as pessoas possuem ideias contraditórias e superficiais. Todavia, o verdadeiro conhecimento “não pode desprezar totalmente o mundo dos sentidos, pois só com base nele é possível chegar às ideias” (LAZARINI, 2007, p. 57). O nível da episteme (ciência), por sua vez, “só pode, portanto, ser atingido através do uso da razão e não dos sentidos e depois de se ter passado pelo nível da opinião (doxa) e percorrido um longo e duro itinerário” (LAZARINI, 2007, p. 57).
Referências Bibliográficas
LAZARINI, Ana Lúcia. Platão e a Educação: um estudo do Livro VII de A República. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, 2007.
PLATÃO. A República. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000, p. 312-317.
Disponível em: Blog Gil Vicente (Acessado em 24/02/2016)
Disponível em: Blog El Acorazado Cinéfilo - Le Cuirassé Cinéphile (Acessado em 24/02/2016)
Disponível em: Blog El Acorazado Cinéfilo - Le Cuirassé Cinéphile
(Acessado em 24/02/2016)
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