Influências no Programa de Lipman

 

            Vejamos como o Programa FpC de Lipman teve a influência do trabalho de vários filósofos, psicólogos e educadores, dentre os quais podemos destacar: a maiêutica de Sócrates, Platão, o pragmatismo de Charles Sander Peirce e John Dewey, as teorias construtivistas de Vygotsky e Jean Piaget ou as ideias de Jerome Bruner.

 

Sócrates e Platão

            Sobre a influência de Sócrates, Lima (2018, p. 42) pondera que “Lipman recria o compromisso socrático da Filosofia, ao propor nas aulas a pergunta e o exame sobre valores que sustentam a vida, pessoal e social”. Tal como Sócrates perambulava pelas ruas de Atenas interrogando seus concidadãos sobre temas como a virtude, o dever, o bem e a piedade, o educador se torna um “condutor dos educandos [...] um mediador, assim como Sócrates agia” (LIMA, 2018, p. 42). Lipman parte da maiêutica socrática que estimula o pensar do seu interlocutor para que ele próprio possa dar à luz (maiêutica significa parteira em grego) as suas ideias. Assim a criança deve ser estimulada a expor suas ideias, instigada a pensar. “Assim como era com Sócrates, Lipman tenta demonstrar com seu método, que o diálogo deve ser encorajado para a construção de hipóteses, para detectar incoerências e incompatibilidades nos discursos, tirar conclusões válidas e assim por diante” (SEUS, 2020, p. 14).

            Referindo-se a Sócrates, Lipman (1990, p. 28 – grifo do autor) afirma que a filosofia era, para o filósofo grego, um modo de vida e não uma profissão e que, além disso, “O que Sócrates nos exemplifica não é uma filosofia conhecida nem aplicada, mas praticada. Ele nos desafia a reconhecer que como obra, como forma de vida, a filosofia é algo a que qualquer um de nós pode dedicar-se”.

            Discípulo de Sócrates e um dos principais divulgadores de suas ideias, Platão também é alvo de reflexão e análise por parte de Lipman. Platão imortalizou o método do diálogo de Sócrates através da escrita. A maior parte das obras de Platão é escrita no formato de diálogo. Mas um diálogo que não é mera disputa retórica, como acontecia com os Sofistas, e cujo método era condenado tanto por Sócrates quanto pelo próprio Platão.

            É preciso considerar que na época de Sócrates e Platão, era ensinado aos estudantes procedimentos e técnicas da heurística ou da dialética como uma disputa intelectual onde os debatedores defendia ou atacavam independente de suas crenças pessoais. É nessas condições que Platão considera necessário proteger não apenas os jovens, mas até mesmo as crianças da filosofia, pois a dialética “irá subverte-las, corrompê-las, infectá-las com a desordem” (LIPMAN, 1990, p. 30). Eis o que torna a retórica clássica e a dialética perigosas, não apenas para filósofos, mas para os jovens e aprendizes.

O método erístico de ensino, provavelmente introduzido em Atenas pelo sofista Protágoras, pode ter sido adequado para preparar os futuros advogados e políticos, mas será que era realmente útil para a preparação de todos os demais (inclusive pretensos filósofos) que buscavam uma visão de mundo mais racional? (LIPMAN, 1990, p. 30).

            É por isso que vemos Platão, na sua obra República, condenando a prática da filosofia pelas crianças. Mas o que Platão condenava, não era a prática da filosofia enquanto tal

mas a redução da filosofia aos exercícios sofísticos da dialética ou retórica, cujos efeitos sobre as crianças seriam particularmente devastadores e desmoralizantes. Existe melhor maneira de garantir o amoralismo no adulto do que ensinando à criança que uma crença é tão defensável quanto qualquer outra? Que o certo deve ser o produto do poder de argumentação? Se esse é o modo pelo qual a filosofia é colocada à disposição das crianças, Platão poderia ter dito, é muito melhor, então, que elas não tenham filosofia alguma (LIPMAN, 1990, p. 31).

            Platão condena, portanto, a argumentação erística e considera que possa ser prejudicial para as crianças na forma como era proposto pelos Sofistas. “Evidentemente Platão via os sofistas como seus rivais em subversão: eles lhe pareciam estar minando as bases da moralidade grega, enquanto Platão estava tentando minar as bases da imoralidade grega” (LIPMAN, 1990, p. 31 – grifo do autor).

 

Charles Sander Peirce

            Na elaboração de sua abordagem de Filosofia para Crianças Lipman adotou o conceito de “comunidade de investigação” a partir da transposição, conforme aponta Sanchez (2005, p. 32) e Lima (2018, p. 45-47), do conceito de “comunidade científica” de Charles Sanders Peirce (1839-1914). O conceito de comunidade de investigação foi utilizado por Peirce “para designar os grupos de cientistas envolvidos em uma mesma investigação” (DIAS, 2009, p. 50), que envolve cooperação e colaboração, tornando a investigação científica um processo comunitário.

            Os conceitos de “comunidade” e “investigação” já estavam presentes na filosofia de Peirce, ressaltando a ideia de que os cientistas formavam uma comunidade ao estabelecerem um objetivo em comum e se dedicar à utilização de procedimentos semelhantes para alcançar tais objetivos. Esses procedimentos estavam, naturalmente, ligados à atividade investigativa desta comunidade. Desta forma, Lipman procurou pensar a sala de aula como uma comunidade de investigação, um espaço de investigação.

 

John Dewey

            A influência de John Dewey sobre Lipman é bem abrangente de modo que abordaremos em um texto específico (saiba mais em: Matthew Lipman e John Dewey). Podemos perceber traços da filosofia de John Dewey no modo como Lipman aborda o ato de pensar reflexivo do ser humano e também na própria definição de educação. “Dewey vê a educação como uma forma de aprimorar a experiência do estudante, reorganizando-a, reconstruindo-a, enriquecendo-a [...] Dewey vê na escola o espaço de construção do pensamento do aluno” (LIMA, 2018, p. 54). Daí a importância que Dewey atribui à filosofia como uma forma de trabalhar o pensar e problematizar a experiência algo que é compartilhado por Lipman. E temos ainda a forma como é percebida a relação entre educação e democracia para ambos os filósofos: “Como as instituições educativas atuam na ordem social, os autores propõem uma educação ‘para’ e ‘na’ democracia, à medida que uma provê as ferramentas necessárias aos estudantes para o desenvolvimento da outra e vice-versa” (LIMA, 2018, p. 55).

 

Piaget e Vygotsky

            A proposta de Lipman encontra apoio na concepção construtivista/interacionista de Piaget e Vygotsky. Para Lipman o desenvolvimento da criança, tal como em Piaget, se assenta num construtivismo, numa relação interativa entre criança e escola, na tese de que o conhecimento não depende nem só da criança (sujeito) nem só do conteúdo de estudo (objeto). As estruturas da inteligência são produto de uma construção (daí a expressão construtivismo) contínua da criança. Tais estruturas constroem-se de modo progressivo num processo de troca entre o aluno e o meio (sujeito/meio).

            Além de Piaget, temos as contribuições de Vygotsky para o Programa de Lipman, no que tange ao conceito de mediação em um ambiente de interação entre os indivíduos: “um processo que promove e amplia o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos por meio dos conteúdos” (LIMA, 2018, p. 48). Embora a abordagem sócio interacionista de Vygotsky possa ter pressupostos filosóficos e pedagógicos diversos dos de Lipman, ambos concebem um ambiente de aprendizagem onde a interação é essencial na construção do aprendizado das crianças. Além disso, a função mediadora da linguagem representa um aspecto fundamental na teoria vygotskiana que defende que “a linguagem cumpre o papel de mediadora do símbolo produzido culturalmente, possibilitando o aprimoramento das funções psicológicas superiores e a compreensão de conceitos” (LIMA, 2018, p. 50). Tais conceitos estão em relação direta com a concepção de pensamento de ordem superior de Lipman, como veremos mais adiante.

            A aquisição da linguagem abre um mundo cheio de novas possibilidades para a criança. As palavras podem substituir objetos e a criança não precisa mais ver uma bola para saber que existe a bola. A possibilidade de expressão por meio de palavras significa que a criança já possui imagens mentais que representam os objetos do mundo. São representações dotadas das características particulares dos objetos e que irão permitir à criança levantar muitas questões sobre aquilo que as rodeia.

 

Referências

DIAS, Marinês Barbosa de Oliveira. Professores de Filosofia para Crianças – quem são eles? Uma análise critico diagnostica da construção da identidade profissional dos professores que trabalham com o Programa Filosofia para Crianças de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Educação), Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Campinas-SP, 2009.

LIMA, Caroliny Santos. Crianças Filosofando: uma proposta metodológica de ensino à luz de Matthew Lipman. Dissertação (Mestrado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Gestão de Ensino da Educação Básica, Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2018.

LIPMAN, Matthew. A Filosofia vai à Escola. Tradução de Maria Elice de Brzezinski Prestes e Lucia Maria Silva Kremer. São Paulo: Summus editorial, 1990.

SANCHEZ, Liliane Barreira. Lipman e o Ensino de uma Filosofia Ideal. APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação, ano III, n. 4, p. 29-48, 2005. Acesso em: 24 jun. 2020.

SEUS, Beatris da Silva. O pensamento de Matthew Lipman no contexto pelotense: por uma ótica pessoal. Enciclopédia, v. 7, p. 12-26, 2020. Acesso em: 27 jun. 2020.
 

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