John Locke e os Poderes Fundamentais
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em jul. 2020
Através do contrato social em que, por consentimento, os homens escolhem deixar o estado de natureza e passam então a viver em sociedade (saiba mais em: O Contratualismo de Locke), ocorre a alienação da liberdade natural, ou seja, os homens transferem o poder de liberdade que tinham no estado de natureza (tanto o poder de julgar quanto o poder de executar sentenças de atos considerados equivocados) em prol da comunidade política regulamentada pela lei positivada (lei civil).
Este pacto de consentimento dá origem ao poder executivo (governo) cujo primeiro ato ao instituir o Estado deve ser o de criar o poder legislativo (o estabelecimento do poder legislativo deve ser a primeira lei positiva fundamental de todas as comunidades) que deve estar nas mãos do povo, caso contrário, será um poder despótico e tirano.
[...] “a lei positiva primeira e fundamental de todas as sociedades políticas é o estabelecimento do poder legislativo [...]”. Tal poder deve sancionar leis inalteráveis e estar baseado na escolha pública do corpo legislador de modo que reflita a confiança da sociedade. O legislativo pode estar nas mãos de um ou muitos e funcionar sempre ou por intervalos, porém não deve em nenhum momento ser arbitrário sobre a vida e os haveres do povo. Ao legislativo não se pode conceder poder maior que aqueles possuídos no anterior estado de natureza (SILVA, 2014, p. 187).
Temos aqui, então, dois poderes fundamentais do Estado: o poder legislativo e o poder executivo. “Embora considere estes os dois poderes fundamentais, Locke considera também um terceiro poder, que ele chama federativo. Este consiste no poder governamental de firmar pactos com outros Estados, mas é um aspecto do poder executivo” (NODARI, 1998, p. 144).
Ao estabelecer a divisão entre os poderes podemos definir como em Locke tanto o poder federativo quanto o poder executivo estão subordinados ao poder legislativo: “1º Legislativo –> 2º Executivo –> 3º federativo” (SILVA, 2014, p. 190).
Curiosamente, ao contrário de alguns de seus sucessores, Locke não considera o poder judiciário como um poder independente e distinto. “O judiciário não era, para Locke, separado, mas atributo geral do Estado. Locke reconheceu que o poder judiciário deveria ser imparcial e íntegro [...] mas não teria sentido colocá-lo ao lado dos poderes legislativo e executivo” (NODARI, 1998, p. 149-150).
O Poder Legislativo
O poder executivo, que tem a atribuição de executar as leis, está subordinado ao legislativo, responsável pela elaboração das leis, ou seja, das normas gerais da comunidade política, sendo que o legislativo “por sua vez, ainda que seja poder supremo, está subordinado ao povo, de cujo consenso deriva” (NODARI, 1998, p. 144). Por isso o poder legislativo é um poder fiduciário, ou seja, delegado pelo povo. O poder legislativo é o poder supremo e soberano: “É supremo porque representa literalmente a força conjunta da comunidade que, para permanecer um corpo pode ter apenas um poder supremo” (NODARI, 1998, p. 144-145).
Subordinado ao povo e constituído pela sociedade, o poder legislativo “tem a obrigação e o objetivo de zelar pela paz, segurança e bem comum do povo, provendo contra os inconvenientes que tomam o estado de natureza tão inseguro e arriscado” (NODARI, 1998, p. 145).
[...] em qualquer comunidade e em todas as formas de governo, o legislativo, pelo poder a ele confiado pela sociedade e pela lei de Deus e da natureza, tem de governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, tendo como fim último o bem do povo. A lei, para Locke, não constitui uma restrição aos direitos dos homens, mas a garantia desses direitos. A lei não é limitação, mas orientação livre e inteligente. Seu propósito não é abolir, mas preservar e ampliar a liberdade. Por isso, onde não há lei, não há liberdade. A liberdade tem de ser livre da restrição e da violência de terceiros, o que não pode dar-se se não há lei. Aqui, ser livre não significa a licença de fazer o que cada um bem entende e lhe apraz, mas a liberdade de dispor e ordenar, conforme lhe apraz, a própria pessoa, as ações, as posses e toda a sua propriedade, dentro da sanção das leis sob as quais vive, sem ficar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguindo livremente a própria vontade (NODARI, 1998, p. 145-146).
Mesmo supremo e soberano, o poder legislativo também tem limites, ou seja, ele não pode cometer certos equívocos. Locke estabelece limitações bem claras à extensão do poder legislativo.
1) O Poder Legislativo limita-se ao bem público: “não pode ser um poder arbitrário sob a vida e a fortuna das pessoas” (NODARI, 1998, p. 146); “jamais deve escravizar ou empobrecer deliberadamente seus súditos” (SILVA, 2014, p. 187).
2) O Poder Legislativo não pode legislar por meio de decretos “extemporâneos e arbitrários, mas está na obrigação de dispensar justiça e decidir pelos direitos dos súditos mediante leis promulgadas, fixas e por juízes autorizados, conhecidos” (NODARI, 1998, p. 146). O legislativo deve sempre decidir através de “leis promulgadas e fixas, e de juízes conhecidos e autorizados” (SILVA, 2014, p. 187). Ao renunciarem os homens ao seu poder natural em favor da sociedade em que ingressam em uma comunidade civil eles depositam “o poder legislativo nas mãos que considera convenientes, confiando-lhes o encargo de que a sociedade seja governada por leis expressas” (SILVA, 2014, p. 188).
3) O Poder Legislativo não pode transferir o seu poder de elaborar leis: “por ser um delegated power from the people, aqueles que o detém não podem transmiti-los a outros” (SILVA, 2014, p. 188). “Somente o povo pode indicar a forma da comunidade, a qual consiste em constituir o legislativo e indicar em quais mãos deve estar. O legislativo é derivado do povo por concessão ou instituição positiva e voluntária, o qual importa somente fazer leis (NODARI, 1998, p. 147). Somente ao povo cabe
designar a formada sociedade política, que se dá através da constituição do legislativo, e indicar em que mãos será depositado”; está apenas nas mãos do povo dizer: “submeter-nos-emos às regras e seremos governados pelas leis estabelecidas por tais homens e sob tais formas [...]”. São as pessoas que definem o modo e a forma de organização da sociedade política; e a instauração dessa ordem não elimina os direitos naturais (SILVA, 2014, p. 188).
4) As leis da natureza impõem limites ao Poder Legislativo: “a lei de natureza continua como pano de fundo, sustentáculo universal de todas as leis positivas, pois consiste na vontade de Deus e, portanto, está de acordo com a razão” (SILVA, 2014, p. 187). Os direitos impostos pela lei de natureza não cessam na sociedade e, na verdade, até se tornam mais rigorosas porque, “por meio de leis humanas, a ela se acrescem penalidades conhecidas a fim de forçar sua observância” (SILVA, 2014, p. 187). Por isso, nem o Poder Legislativo, nem o Estado, pode tomar qualquer parte da propriedade dos homens sem o seu consentimento. O Poder Legislativo “não pode tirar a qualquer homem parte de sua propriedade sem seu consentimento, porquanto, sendo a preservação da propriedade o objetivo do governo e a razão de entrarem os homens em sociedade” (NODARI, 1998, p. 146). Além disso a preservação da propriedade é justamente
o fim pelo qual o legislativo fora criado, essa finalidade “pressupõe e necessariamente exige que o povo tenha propriedade, sem o que será forçoso supor que todos percam, ao entrarem em sociedade, aquilo que constitui o objetivo pelo qual nela ingressaram, um absurdo por demais flagrante para ser admitido por qualquer um (SILVA, 2014, p. 188).
Finalmente, o poder legislativo não é um poder permanente, porque as leis duram muito tempo e uma vez estabelecidas não há mais a necessidade do poder legislativo, desde que suas leis sejam justas e valham para todos. “Pelo fato de não ser um poder permanente, quando seus representantes são escolhidos – representatives chosen –, em determinadas épocas, cabe ao executivo convocar novas eleições (Cf. T2, § 154)” (SILVA, 2014, p. 190).
O Poder Executivo
As leis elaboradas pelo poder legislativo precisam ser executadas e por isso se torna necessária a existência de um outro poder, que é o executivo. “Enquanto o legislativo determina como devem ser empregadas as forças de um Estado para a conservação da sociedade e de seus membros, o executivo assegura, no interior da sociedade, a execução e a observância das leis positivas” (NODARI, 1998, p. 147).
Como o poder legislativo é o poder soberano e supremo, o poder executivo lhe está subordinado. O único momento em que o executivo se volta para o poder legislativo mas não lhe sendo superior, é no momento de convocar ou dispensar o poder legislativo. Tal poder de convocação e dispensa é um poder fiduciário, ou seja, dado pelo povo, com o único objetivo e propósito de evitar perigos ao próprio povo. Isso só é possível de acontecer nos casos em que o poder legislativo não garanta os direitos naturais fundamentais dos homens.
Todavia, é bom dar-se conta de que o executivo não é um simples delegado às ordens do legislativo que o confinaria numa tarefa subalterna de pura e simples execução. Neste sentido, quando os poderes executivo e legislativo estiverem em mãos diversas, como acham-se nas monarquias moderadas ou governos bem constituídos, o bem da sociedade exige que várias questões fiquem entregues a discrição de quem dispõe do poder executivo. Há muitos assuntos em que a lei, seja porque os legisladores não são capazes de prever e prover por meio de leis tudo quanto possa ser necessário, seja porque a lei não pode prover por meio algum, deve ser entregue à discrição daquele que tem nas mãos o poder executivo, para que regule tais assuntos conforme o exigirem o bem público e a vantagem geral (NODARI, 1998, p. 148-149).
A constituição de diferentes poderes se faz necessária para que o poder não esteja concentrado nas mãos de uma única pessoa (como acontecia com a Monarquia Absolutista): “surge então a necessidade de divisão de poderes entre o legislativo e o executivo – and thus the legislative and executive power come often to be separated” (SILVA, 2014, p. 189). Há que se considerar também a tentação, por causa da fraqueza humana, de tomar conta do poder e, por isso,
não é bom que as mesmas pessoas que tem por missão elaborar as leis também tenham nas mãos a faculdade de pô-las em prática, ficando dessa maneira isentas de obediência às leis que fazem e podendo amoldar a lei a favor delas. Então, é bom que o poder legislativo e o poder executivo estejam em mãos diferentes, para que todos estejam submetidos à obediência das leis de uma comunidade (NODARI, 1998, p. 147).
E mais adiante temos que, nas palavras de Nodari (1998, p. 148):
O poder legislativo e o poder executivo, em todas as monarquias moderadas e em todos os governos ordenados, devem achar-se em mãos diferentes. Para isso, há, por um lado, uma razão inteiramente prática: o poder executivo deve estar sempre a postos para fazer executar as leis; o poder legislativo não precisa de estar sempre a postos, porque não é oportuno legislar constantemente. Não é necessário estar sempre fazendo leis, mas sempre o é exigir a execução das leis promulgadas. Mas há, por outro lado, uma razão inteiramente preventiva, pois a tentação de abusar do poder pode assenhorar-se daqueles que detêm nas mãos ambos os poderes, ou seja, tanto o legislativo como e executivo.
Ao contrário do poder legislativo que não tem a necessidade de ser permanente, existe a necessidade de um poder permanente para executar aquilo que é estabelecido pelo poder legislativo, ou seja, os regulamentos positivos da lei civil. “O executivo exige ser um poder permanente, o legislativo não, porém no legislativo permanece o poder de retirá-lo dessas mãos se encontrar uma causa para tanto ou a fim de punir qualquer má administração contrária às leis” (SILVA, 2014, p. 190).
Da mesma forma como o poder legislativo tem como limite as leis naturais, que servem de base reguladora das leis civis, regras e costumes dos povos, o mesmo serve para o poder executivo: “Se o próprio poder político corromper-se, passar a governar contra a razão, é lícito o povo se rebelar contra o Estado [...] é sobre esse pano de fundo que Locke defenderá o direito dos povos de dissolver os governos e fazer a revolução” (SILVA, 2014, p. 189). Sobre a possibilidade de dissolução do poder executivo, ou seja, do governo, em casos de transgressão das leis, Locke defende que o povo de uma república tem todo o direito de dissolver um governo corrompido e que “esse risco é mais frequente quando os reis passam a governar sem convocar parlamentos, bem como a abusar do uso indevido da prerrogativa” (SILVA, 2014, p. 192).
O Poder Federativo
Há um terceiro poder, além do legislativo e do executivo, encarregado de lidar com as questões externas à sociedade, ou seja, em sua relação com outras comunidades. Questões de guerra e paz, tratados e alianças, todas ficam a encargo do poder federativo, que na verdade faz parte do poder executivo não sendo exatamente um poder autônomo. “É o poder voltado para o exterior, para outras comunidades em relações amigáveis ou para proteção contra a agressão. É o poder encarregado de administrar as relações exteriores [...] sua única característica é seu direcionamento externo” (NODARI, 1998, p. 149).
O poder federativo decorre da necessidade de que tal como era possível o estado de natureza degenerar em um estado de guerra, o mesmo acontece no estado civil. Um poder capaz de solucionar casos de guerra e paz e “de firmar ligas e promover alianças e todas as transações com todas as pessoas e sociedades políticas externas [...]” (apud SILVA, 2014, p. 189-190).
Entretanto, mesmo sendo poderes diferentes, o executivo – interesses internos da commonwealth através de leis próprias - e o federativo - segurança e interesse do público em relação ao que é exterior –, Locke defende que ambos devam estar unidos numa só pessoa. O federativo deve estar depositado nas mãos do executivo, pois o exercício de ambos requer a força em conjunta da comunidade, bem como ser regulado por leis antecedentes fixas e positivas (SILVA, 2014, p. 190).
Referências Bibliográficas
NODARI, Paulo César. A emergência do individualismo moderno no pensamento de John Locke. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte-MG, 1998.
SILVA, Saulo Henrique S. Robert Filmer e a emergência da Filosofia Liberal. Tese (Doutorado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
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