História da Democracia

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em 2013

Os filósofos gregos e a noção de democracia

            É na Grécia Antiga que vamos encontrar aqueles que são considerados como os dois primeiros grandes mestres do pensamento político e social: Platão e seu discípulo, Aristóteles.

            Platão e Aristóteles refletiram sobre as principais questões políticas de sua época e redigiram algumas obras onde aparece de forma clara suas ideias em torno da política grega e ateninense e, com base na análise das sociedades e suas respectivas relações sócio-políticas, procuraram dividi-las naquilo que eles próprios denominaram de as formas justas e degeneradas do Estado.

Partindo do princípio de que o fim do Estado é facilitar o alcance do bem comum, tanto Platão quanto Aristóteles dividem as constituições possíveis (ou seja, as possíveis formas de governo) em duas categorias: justas e injustas. Afirmam que ocorrem três formas de constituições justas e outras tantas injustas. Constituições justas são aquelas que servem ao bem comum e não só aos interesses dos governantes. Estas são a monarquia, isto é, o comando de um só que cuida do bem de todos; a aristocracia, isto é, o comando dos virtuosos, dos melhores, que cuidam do bem de todos sem se atribuir nenhum privilégio; a república ou politia, isto é, o governo popular que cuida do bem de toda a cidade. Ao contrário, constituições injustas são aquelas que servem aos interesses dos governantes e não ao bem comum. São elas: a tirania, ou seja, o comando de um só chefe que persegue o próprio interesse; a oligarquia, ou seja, o comando dos ricos que procuram o bem econômico pessoal; a toda a diferença social em nome da igualdade (MONDIN, 1980, p. 121)

            Em suas obras, tal como A república, Platão define a democracia como o estado no qual reina a liberdade e descreve uma sociedade utópica dirigida pelos filósofos, únicos conhecedores da autêntica realidade, que ocupariam o lugar dos reis, tiranos e oligarcas. Mas o filósofo ficou desiludido com a forma como a política era direcionada naquela época, sobretudo depois de algumas experiências frustradas no campo da política. “Outrora na minha juventude – escreve Platão quando tinha então 70 anos – experimentei o que tantos jovens experimentam. Tinha o projeto de, no dia em que pudesse dispor de mim próprio, imediatamente intervir na política”. Platão expressou este sentimento em uma de suas cartas endereçadas aos parentes e amigos de Dion de Siracusa, a Carta VII. Através da Carta VII sabe-se que Platão foi por três vezes a Siracusa, numa tentativa, todas malogradas, de implantar seu ideário filosófico-político. Desta forma, dentre as diversas contribuições que poderíamos extrair do conjunto da obra de Platão podemos destacar a idéia de que todo filósofo deve ter um papel ativo – prático – dentro da sociedade. E foi por isso que Platão tentou repetidas vezes implantar suas idéias em Siracusa até se desiludir completamente e se voltar quase que exclusivamente para a reflexão filosófica.

            Aristóteles, discípulo de Platão e mestre de Alexandre o Grande, deixou a obra política mais influente na antiguidade clássica e na Idade Média. Em A Política, o primeiro tratado conhecido sobre a natureza, funções e divisão do estado e as várias formas de governo defendeu, como Platão, equilíbrio e moderação na prática do poder, apesar de considerar impraticáveis muitos dos conceitos de seu mestre. Para Aristóteles, a pólis é o ambiente adequado ao desenvolvimento das aptidões humanas e, como o homem é, por natureza, um animal político, a associação é natural e não convencional. Na busca do bem, o homem forma a comunidade, que se organiza pela distribuição das tarefas especializadas. Aristóteles entendia que o homem nascia para viver em sociedade e por isso não poderia dela se isentar. Aristóteles procurou demonstrar que somente na cidade-estado o homem seria capaz de desenvolver todas as suas capacidades. A pólis seria aquela cidade que torna possível a felicidade obtida pela vida criativa da razão (bios theoretikos). À felicidade individual deve corresponder o bem comum e, portanto, uma cidade feliz (polis eudaimon).

Da Democracia entendida em sentido mais amplo, Aristóteles subdistingue cinco formas: 1) ricos e pobres participam do Governo em condições paritárias. A maioria é popular unicamente porque a classe popular é mais numerosa. 2) Os cargos públicos são distribuídos com base num censo muito baixo. 3) São admitidos aos cargos públicos todos os cidadãos entre os quais os que foram privados de direitos civis após processo judicial. 4) São admitidos aos cargos públicos todos os cidadãos sem exceção. 5) Quaisquer que sejam os direitos políticos, soberana é a massa e não a lei. Este último caso é o da dominação dos demagogos ou seja, a verdadeira forma corrupta do Governo popular (BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINI, 1998, p. 330).

            De modo geral, Platão e Aristóteles acreditam que o Estado, para que ele possa cumprir sua função essencial de garantir a paz, a justiça e o bem-estar para todos, é necessário dispor de um governo sábio e justo. O bom governo depende da virtude de bons governantes e as massas devem ser dirigidas por homens que se distinguem pelo saber, sendo levados assim a conceber uma espécie sofocracia, um governo dos sábios. A proposta de Platão leva a um modelo aristocrático de poder, mas não a uma aristocracia da riqueza e sim, da inteligência, em que o poder é confiado aos melhores. Para Platão, a política é a arte de governar os homens e o político é precisamente aquele que conhece a arte da política. Para governar uma cidade é preciso conhecer esta arte.

 

A noção de Democracia na Filosofia moderna

            Na modernidade é sobretudo em Rousseau, pensador francês do séc. XVII e autêntico teórico revolucionário do iluminismo, que a Democracia vai aparecer como a forma mais legítima de Governo. Na sua obra Contrato social confluem, até se fundirem, a doutrina clássica da soberania popular, a quem compete, através da formação de uma vontade geral inalienável, indivisível e infalível, o poder de fazer as leis, o ideal da doutrina contratualista do Estado fundado sobre o consenso e sobre a participação de todos na produção das leis e o ideal igualitário que acompanhou na história, a ideia republicana, levantando-se contra a desigualdade dos regimes monárquicos e despóticos.

            O Contrato Social é um clássico de filosofia e sociologia, um estudo minucioso, profundo e sistemático das teorias políticas em meados do século XVIII. Nele, são discutidas as questões da origem, formação e manutenção das sociedades humanas entendidas sobre a base da celebração de um acordo ou contrato entre os homens. O povo aparece como a origem legítima do poder soberano e não mais a figura do monarca. O povo passa a ser o soberano e o governante (monarca ou administrador eleito) restringe-se à função de agente do soberano. Rousseau torna-se, desta forma, um dos maiores defensores da democracia.

            O Estado, que Rousseau constrói é uma Democracia mas prefere chamá-lo, seguindo a doutrina mais moderna das formas de Governo, de "república": enquanto chama república à forma do Estado ou do corpo político, considera a Democracia uma das três formas possíveis de Governo de um corpo político (retomando a distinção feita por Bodin entre forma de Estado e a forma de Governo), que, enquanto tal, ou é uma república ou não é nem sequer um Estado mas o domínio privado deste ou daquele poderoso que tomou conta dele e o governa através da força.

            Mas antes de Rousseau, não podemos esquecer as reflexões de Maquiavel que escreveu

no início da obra que ele dedicou ao principado que "todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados". Se bem que a república, em sua contraposição à monarquia, não se identifique com a Democracia, com o "Governo popular", até porque nas repúblicas democráticas existem repúblicas aristocráticas (para não falar do Governo misto que o próprio Maquiavel vê como um exemplo perfeito na república romana), na noção idealizada da república que de Maquiavel passará através dos escritores radicais dos séculos XVII e XVIII até à Revolução Francesa, entendida em sua oposição ao governo real, como aquela forma de Governo em que o poder não está concentrado nas mãos de um só mas é distribuído variadamente por diversos órgãos colegiados, embora, por vezes, contrastando entre si, se acham constantemente alguns traços que contribuíram para formar a imagem ou pelo menos uma das imagens da Democracia moderna, que hoje, cada vez mais frequentemente, é definida como regime policrático oposto ao regime monocrático (BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINI, 1998, p. 322).

            Teórico do iluminismo, junto com Rousseau, Voltaire e tantos outros, Montesquieu descreve três formas de Governo: república, monarquia e despotismo, sendo que a forma republicana de Governo compreende tanto a república democrática como a aristocrática, quase sempre tratadas separadamente. Quando o discurso visa os princípios de um Governo, o princípio próprio da república, a virtude, é o princípio clássico da Democracia e não da aristocracia.

 

A noção de Democracia na contemporaneidade

            Um dos pensadores contemporâneos cuja ideia de Democracia é um tema recorrente em suas obras é Noberto Bobbio. Podemos verificar facilmente isso no contexto de suas obras dentre as quais podemos destacar:

  •  O futuro da democracia (cuja segunda edição ampliada é de 1991);
  •  o texto “Democracia e ditadura”, inserido no livro Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política (1985);
  •  os capítulos “Democracia: os fundamentos” e “Democracia: as técnicas”, integram o livro Teoria geral da política: a filosofia política e a lição dos clássicos (1999);
  •  em sua obra Do fascismo à democracia: os regimes, as ideologias e a cultura política Bobbio procura alternativas contra tudo aquilo que o fascismo emblematizou. Traduzido para o português em 2007 pela editora Elsevier, a obra aprofunda o debate em torno do regime fascista: sua origem, os acontecimentos que conduziram à gênese e à afirmação do fascismo, sua ideologia, a difusão da resistência contra o regime, sua queda e a instauração da democracia constitucional na Itália, além de alguns personagens ligados ao regime. “O modo pelo qual Bobbio reconstrói a natureza do regime e da ideologia fascista, isto é, do programa italiano da antidemocracia, oferece um parâmetro para a análise comparativa de muitos fenômenos análogos” (Michelangelo Bovero, prefácio à edição brasileira apud BOBBIO, 2007).
  • a conferência Qual Democracia? (traduzido em 2009 pelas edições Loyola).

            É claro que as discussões de Bobbio sobre a Democracia não se esgotam nesses textos ou obras. Aqui estão apenas alguns exemplos para demonstrar como este pensador italiano tinha, de fato, um vivo interesse pela questão da democracia e do governo popular.

            Vale salientar que é de Bobbio, o verbete "democracia" que consta no Dicionário de Política (organizado pelo próprio Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino).

            Segundo Bobbio:

Na teoria contemporânea da Democracia confluem três grandes tradições do pensamento político: a) a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica, das três formas de Governo, segundo a qual a Democracia, como Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que gozam dos direitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um só, e da aristocracia, como Governo de poucos; b) a teoria medieval, de origem "romana, apoiada na soberania popular, na base da qual há a contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior; c) a teoria moderna, conhecida como teoria de Maquiavel, nascida com o Estado moderno na forma das grandes monarquias, segundo a qual as formas históricas de Governo são essencialmente duas: a monarquia e a república, e a antiga Democracia nada mais é que uma forma de república (a outra é a aristocracia), onde se origina o intercâmbio característico do período prérevolucionário entre ideais democráticos e ideais republicanos e o Governo genuinamente popular é chamado, em vez de Democracia, de república (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 319)

            Neste mesmo Verbete encontramos a seguinte definição de Democracia na teoria política contemporânea de acordo com um conjunto de características que definiriam um regime democrático:

  1. o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou de segundo grau;
  2. junto do supremo órgão legislativo deverá haver outras instituições com dirigentes eleitos, como os órgãos da administração local ou o chefe de Estado (tal como acontece nas repúblicas);
  3. todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores;
  4. todos os eleitores devem ter voto igual;
  5. todos os eleitores devem ser livres em votar segundo a própria opinião formada o mais livremente possível, isto é, numa disputa livre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional;
  6. devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas (o que exclui como democrática qualquer eleição de lista única ou bloqueada);
  7. tanto para as eleições dos representantes como para as decisões do órgão político supremo vale o princípio da maioria numérica, se bem que podem ser estabelecidas várias formas de maioria segundo critérios de oportunidade não definidos de uma vez para sempre;
  8. nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições;
  9. o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do poder executivo, por sua vez, eleito pelo povo.

         

            Certamente nenhum regime histórico jamais observou inteiramente o ditado de todas estas regras; e por isso é lícito falar de regimes mais ou menos democráticos. Não é possível estabelecer quantas regras devem ser observadas para que um regime possa dizer-se democrático. Pode afirmar-se somente que um regime que não observa nenhuma não é certamente um regime democrático, pelo menos até que se tenha definido o significado comportamental de Democracia. (BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINI, 1998, p. 327).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARBLASTER, A. A democracia. Lisboa: Estampa, 1988.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília : Editora Universidade de Brasília, 1998. Vol I.

BOBBIO, N. Do Fascismo à Democracia: os regimes, as ideologias, os personagens e as culturas políticas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.

DAVIES, J. K. Democracy and classical Greece. Londres: Fontana, 1978.

FINLEY, M. I. A democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FORREST, W. G. The emergence of greek democracy. Londres: Weidenfeld & Nicolson, 1966.

JONES, A. H. M. Atheniam democracy. Oxford: Basil Blackwell, 1957.

MONDIN, B. Introdução à Filosofia: problemas, sistemas, autores, obras. Tradução de J. Renard. São Paulo: Paulus, 1980.

MOSSÉ, Claude. Historia de una democracia, Atenas. Madrid: Akal Ediciones, 1987.

____. O cidadão na Grécia Antiga. Lisboa: Edições 70, 1999.

____. Péricles, o inventor da democracia. São Paulo: Estação Liberdade, 2008.

 

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NOTA

 

Análises sobre a democracia antiga podem ser encontradas em: ARBLASTER, 1988; DAVIES, 1978; FINLEY, 1988; FORREST, 1966; JONES, 1957 e Claude Mossé (1987, 1999 e 2008).