O crime de gestão temerária à luz do princípio da legalidade
Um dos mais importantes princípios em matéria criminal, sem dúvida alguma, é o da legalidade (anterioridade da lei penal). Não é à toa que além de estar previsto na Constituição Federal (art. 5º, XXXIX), também está estampado no primeiro artigo do Código Penal:
Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal.
Isto é, para que um indivíduo seja responsabilizado penalmente pela prática de uma conduta, é preciso que a sua ação (ou omissão a depender do caso) esteja prevista em algum tipo penal de forma prévia. Sua função é limitar o poder punitivo do Estado a fim de evitar acusações arbitrárias; sem amparo legal.
Paulo (BONAVIDES, p. 112) ensina que:
O princípio da legalidade nasceu do anseio de estabelecer na sociedade humana regras permanentes e válidas, que fossem obras da razão, e pudessem abrigar os indivíduos de uma conduta arbitrária e imprevisível da parte dos governantes. Tinha-se em vista alcançar um estado geral de confiança e certeza na ação dos titulares do poder, evitando-se assim a dúvida, a intranquilidade, a desconfiança e a suspeição, tão usuais onde o poder é absoluto, onde o governo se acha dotado de uma vontade pessoal soberana ou se reputa legibus solutus e onde, enfim, as regras de convivência não foram previamente elaboradas nem reconhecidas.
Exatamente! Não haveria como viver em uma sociedade se as regras não fossem claras e determinadas.
Para o presente artigo é importante aclarar as quatro principais funções do princípio da legalidade, sendo elas:
- proibir a retroatividade da lei penal (caso um indivíduo pratique uma conduta, e esta seja posteriormente definida como crime pelo legislador, ele não poderá ser punido);
- não permitir a criação de crimes e penas por meio dos costumes;
- não permitir que a analogia seja utilizada para a criação de crimes ou para fundamentar e agravar penas;
- e, por fim, proibir que o legislador crie tipos penais vagos e indeterminados.
Ocorre que em razão da evolução incessante da sociedade (industrial, tecnológica, etc) e do grande aumento demográfico, o Direito Penal teve que se adequar às novas relações sociais, bem como tutelar diversos bens jurídicos, que até então, sequer existiam.
Dessa forma, a fim de dar resposta a inúmeras situações distintas, o legislador acabou falhando ao criar alguns tipos penais muito abertos, como exemplo: o crime de gerir temerariamente instituição financeira.
Gestão temerária
Aludido crime está previsto no art. 4º, § único, da Lei .º 7.492/86 (crimes contra o sistema financeiro):
Art. 4º Gerir fraudulentamente instituição financeira:
Pena - Reclusão, de 3 (três) a 12 (doze) anos, e multa.
Parágrafo único. Se a gestão é temerária:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.
O que se qualificaria como temerário? Afinal, em qual diploma encontramos esse conceito? Não se sabe, uma vez que o legislador não diz. Muito embora este crime seja considerado uma norma penal em branco, não há norma secundária que permita encontrar o conceito necessário.
O agente não sabe o que pode ou não fazer para evitar que seja acusado pelo crime em apreço, pois o legislador não respeitou uma das principais funções do princípio da legalidade: a de proibir a criação de tipos penais vagos e indeterminados.
Na prática, quem define as possíveis condutas temerárias é o Banco Central do Brasil. Por exemplo: o gerente de um banco privado está sendo investigado, pois supostamente teria gerido de forma temerária a instituição financeira onde ele trabalhava.
Durante as investigações, por requisição do Ministério Público ou da Autoridade Policial, é expedido ofício à instituição para que os analistas responsáveis emitam um parecer sobre a conduta do investigado. Assim, eles irão consignar no documento se a conduta deste foi temerária ou não.
Neste caso, o legislador não definiu a norma secundária, a qual deveria informar o conceito de “temerário”. Quem faz isso, conforme se verifica acima, é o Banco Central – autarquia federal. Dessa forma, o crime de gestão temerária previsto na Lei de crimes contra o sistema financeiro nacional não está constitucionalmente amparado, pois viola frontalmente o princípio da legalidade.
Não há lógica deixar nas mãos do Banco Central o papel de decidir se o agente praticou crime. Desse modo, salta aos olhos a insegurança jurídica que essa situação causa.
Por fim, são válidas as lições do desembargador Guilherme de Souza NUCCI (2017, p. 898):
Temerário significa arriscado, perigoso e imprudente. O termo é extremamente vago e aberto. Pensamos ofender o princípio da taxatividade e, por consequência, a legalidade. Exige o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal, que “não há crime sem lei anterior que o defina...” (grifamos). Ora, a doutrina é praticamente unânime ao apontar, como corolário dessa definição, seja ela bem-feita, com detalhes suficientes para ser bem compreendida por todos, vale dizer, os tipos penais incriminadores necessitam ser taxativos. Está bem longe de atingir esse objetivo o crime previsto no art. 4º parágrafo único, da Lei 7.492/86. É inconstitucional, portanto.
Todavia, o entendimento dos Tribunais Superiores não é esse:
Para parcela da doutrina, a indeterminação do termo levaria à inconstitucionalidade do tipo penal, por ofensa ao princípio da legalidade. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal tem se deparado com a aplicação do tipo penal desde a edição da lei, há 30 anos, e jamais reconheceu a sua inconstitucionalidade (...). Devendo ser admitida, destarte, a constitucionalidade do tipo penal, a saída que se apresenta, para compreendê-lo como válido, é submetê-lo a uma “interpretação conforme” à Constituição, através de uma redução teleológica do seu campo de incidência. Para tanto, é preciso afastar da incidência da norma penal os casos que se encontrem cobertos pelo risco permitido na esfera da atividade financeira. Desse modo, a contrario sensu, deve-se entender que o tipo penal de gestão temerária pressupõe a violação de deveres extrapenais.(Resp n.º 1613260, STJ, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 24/08/2016).
Assim, ainda que parcela significativa a doutrina, composta por grandes autores, entenda que o crime de gestão temerária é inconstitucional, este continua, como se vê, válido perante os Tribunais.
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2004.
NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas – Vol. 2. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
artigo publicado originalmente por Gustavo dos Santos Gasparoto através do Canal Ciências Criminais
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