Ética e Ciência

por Jeane Machado Glória

acadêmica de Serviço Social da UFAM

postado em abr. 2016

            Podemos dizer que, de maneira radical, a discussão sobre ciência e ética, necessita passar pela concepção filosófica de ‘ser humano’, ‘ética’ e ‘ciência’.

            Iniciemos então pela concepção de ciência.

            A ciência que caracteriza as sociedades modernas pode e deve ser analisada sob seus diversos ângulos. Desde um enfoque mais clássico da epistemologia até um olhar mais recente dos estudos culturais se multiplicam os estudos sobre a atividade científica. Então a partir de que momento a ética passou a fazer parte da reflexão no campo das ciências? Existem vários aspectos ligados à ciência que nos permitem hoje promover esse debate dentre os quais iremos destacar aqui alguns.

        Em nossos dias há uma perspectiva que exerce particular interesse e que se associa ao desenvolvimento contemporâneo das ciências da vida.

        Não muito tempo atrás os experimentos científicos eram feitos sem nenhum critério moral e sem sequer serem questionados. A consequência disto é que muitas pesquisas científicas trouxe vários problemas tanto do ponto de vista do indivíduo como do ponto de vista social. Alguns casos clássicos envolvem, por exemplo, pesquisas com clonagem, células troncos, a possibilidade de manipulação genética da vida e até de preservação duradoura da vida em condições artificiais, ou ainda a intervenção em fetos (aborto), evidenciam a expansão do nosso poder científico-tecnológico. Poder que nos inscreve, logo de imediato, nesse horizonte ético, onde nos dá possibilidade de nos questionarmos sobre o que podemos fazer e o que devemos fazer.

            Sob tal perspectiva podemos dizer que a ciência moderna ocidental contém em si um amplo projeto de dominação: da natureza, de si mesmo e do outro (para uma análise crítica sobre o conhecimento científico e racional como forma de dominação veja em nosso website a seção sobre a Escola de Frankfurt, especificamente a crítica de Adorno e Horkheimer sobre a razão instrumental). O que nos remete a necessidade de uma ciência que não pode prescindir da análise de valores morais e éticos a partir de uma nova postura diante da própria ciência e dos valores da sociedade.

        Neste novo cenário temos também diretrizes dos Comitês de Ética e Pesquisa que regulam a ética nas pesquisas cientificas quando envolve seres humanos ou quanto aos tratos com animais, associados com pesquisa cientifica. Há também uma sensibilidade em relação a intervenção no meio ambiente.

        Embora a concepção moderna de ciência, a que estamos, ainda hoje, associados, seja inseparável da progressiva reafirmação do princípio da autonomia da pesquisa e da rejeição, inegociável, da tutela, seja religiosa ou política, é inegável que o campo das ciências traz em si questões de ordem moral e ética.

           A necessidade de uma reflexão de base epistemológica sobre a racionalidade científica ocidental, incluindo aí o campo da ética e dos valores, é possível encontrar na obra de Edgar Morin. Em sua obra Ciência com Consciência a palavra “consciência” tem dois significados: um sentido intelectual de consciência auto-reflexiva e um outro sentido que “[...] foi formulado por Rabelais em seu preceito: ‘Ciência sem consciência é apenas ruína da alma’. A consciência de que ele fala é, com certeza, a consciência moral” (2005, p. 10). Nessa obra Morin fala ainda da responsabilidade do pesquisador das ciências diante da sociedade e do homem citando como exemplo a carta do gênio da física, Albert Einstein, ao então presidente Roosevelt a respeito das descobertas da física nuclear que conduziram ao desenvolvimento da bomba nuclear. É necessário uma ética do conhecimento, uma ética da responsabilidade e uma reflexão sobre as relações entre ciência e poder que são permeadas de valores morais e sociais: “[...] precisamos colocar para nós mesmos problemáticas éticas levantadas pelo desenvolvimento incontrolado da ciência, em resumo, devemos interrogar a ciência na sua história, no seu desenvolvimento, no seu devir, sob todos os ângulos possíveis.” (2005, p. 130).

            Uma reflexão sobre a responsabilidade dos pesquisadores diante da sociedade e do homem nos remete, por exemplo, ao fato de que várias instituições se preocupam em elaborar um código de ética: como o Código de Ética Médica, o Código de Ética do Psicólogo e muitas outras profissões que estão no bojo do discurso científico. Isso demonstra claramente a necessidade que a sociedade tem de “controlar” as medidas e atitudes das diversas profissões. Será que podemos permitir que a ciência, por exemplo, faça o que ela quiser? A ciência pode pesquisar o que ela quiser?

            A ética seria desta maneira então, intermediária, buscaria a justiça, a harmonia e os caminhos para alcançá-las. Quando buscamos, a justiça, a verdade, o entendimento e o conhecimento, o buscamos para satisfazer uma necessidade do sujeito.

        O que é que distingue a ciência da não ciência? Como podemos demarcar a fronteira entre elas? É importante mencionar que a ciência deve ser entendida de maneira diversa, conforme o tempo em que a estudamos. O que chamamos de “conhecimento científico”, também, pode variar conforme os diversos períodos da história. Na área médica, por exemplo, quando ouvimos uma voz científica dizendo: evite comer ou fazer tal coisa, que faz mal à saúde, e depois alguns anos mais tarde se contradizem dizendo que não é bem assim.

            Podemos mencionar ainda algumas reflexões que são extremamente necessárias hoje em dia no campo das ciências que devem ser discutidas no campo dos valores e da moral, como por exemplo na área da robótica, onde deve haver um princípio segundo o qual um robô jamais deve ser projetado para machucar pessoas ou lhes fazer mal. A área da informática também está repleta de dilemas éticos, ao criar, por exemplo, um programa (softwares) computacional com o objetivo claro de prejudicar as pessoas, como para roubar ou espionar.

            Ou no campo do que se convencionou chamar hoje de Bioética que envolve temas polêmicos como a clonagem, onde uma parte dos ativistas consideram que, pela ética e bom senso, a clonagem só deve ser usada, com seu devido controle, em animais e plantas somente para estudos biológicos - nunca para clonar seres humanos. Temas como o aborto e os casos mais recentes de crianças com microcefalia onde, após uma forte epidemia do zika vírus, através do Aedes Aegypti, o mesmo mosquito transmissor da dengue, uma parte da sociedade entende que seja necessário autorizar o procedimento do aborto reabrindo o debate sobre aborto no país. Atualmente, no Brasil, só é permitido interromper uma gravidez em caso de risco à vida da mãe, quando a concepção foi resultado de um estupro ou quando o feto é anencéfalo (não possui cérebro). Argumenta-se inclusive que inúmeros abortos clandestinos são realizados, muitas vezes feitos sem cuidados médicos adequados. A discussão gera polêmica e está no centro da discussão hoje em meio à epidemia de microcefalia, que por sua vez, também foi alvo de inúmeras críticas de que, por trás de uma preocupação com o direito à escolha da mulher, existe uma tentativa de se buscar o bebê perfeito, algo comparável ao que buscava o nazismo com suas iniciativas de eugenia, de se criar uma “raça perfeita”. O tema desperta atenção inclusive do mundo e da Organização Mundial de Saúde uma vez que o aborto é restrito na América Latina, região também afetada pela epidemia de zika.

            Outro caso polêmico que impõe uma análise ética e moral sobre o comportamento de médicos, por exemplo, no exercício de sua função, são os casos de suspeitas de abuso sexual na hora da consulta e avaliação médica, como ressalta essa notícia do: espaco-vital.jusbrasil.com.br.

Por trás de um jaleco branco e da prerrogativa de terem contato com mulheres, alguns médicos do Distrito Federal estariam abusando sexualmente de pacientes durante consultas. Pelo menos cinco profissionais são investigados pela Polícia Civil suspeitos desse tipo de conduta [...] Em um dos casos, um clínico-geral atendeu uma jovem na especialidade de ginecologista e praticou o abuso em uma clínica particular [...] Os outros episódios seguem em apuração e envolvem três ginecologistas e um oftalmologista [...]

            E outro caso:

O médico Roger Abdelmassih, 68 anos, dono de uma das clínicas de fertilidade mais conhecidas do país, acabou na cadeia por abuso sexual praticado contra, pelo menos, 50 mulheres, a maioria ex-pacientes que estavam sob efeito de sedativos no momento do crime [...] Nesse tipo de relação sexual, o profissional que se utiliza do lugar de poder em relação àquele que lhe entregou sua intimidade com intuito de buscar ajuda, estará transgredindo o princípio da confiança e da responsabilidade impostos pelo regramento moral. Dentro desse contexto, considera-se antiético o relacionamento sexual do médico com o paciente mesmo quando há consentimento por parte do segundo. Deve-se entender que o paciente está em posição de vulnerabilidade e, portanto, podendo-se questionar sua autonomia em consentir. Com relação ao médico, questiona-se sua maturidade emocional e competência para decidir sobre sua conduta.

 

Referências Bibliográficas

MORIN, Edgard. Ciência com consciência. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. Disponível para download em Ebooks Acadêmicos. Acessado em 20/03/2016.

 

WEBGRAFIA CONSULTADA

Revista Ciência & Educação, 1998, 5(1), 1–6

https://www.artigonal.com/educacao-artigos/etica-e-ciencia-urgencia-do-debate-982236.html

https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/01/microcefalia-reabre-discussao-sobre-aborto-no-brasil.html

espaco-vital.jusbrasil.com.br/noticias/medicos-suspeitos-de-abuso-sexual.

 

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