Pensamento social brasileiro

por Alexsandro M. Medeiros

lattes.cnpq.br/6947356140810110

 postado em ago. 2018

            Pensar a questão social é, grosso modo, refletir sobre a causa ou o problema social, os fundamentos filosóficos destas causas e problemas, analisar de forma crítica e científica o contexto social, considerando que a questão social é a base do desenvolvimento de qualquer sociedade. Em uma perspectiva mais ampla, Freitas Pinto (2002, p. 144-145) considera que a

idéia de pensamento social corresponde em parte à constatação de que a riqueza dos processos sociais e culturais jamais é revelada plenamente quando utilizamos tão somente os métodos e recursos de uma determinada disciplina como a sociologia, a antropologia ou história. O pensamento social é construído transpondo barreiras e limites de disciplinas e campos de conhecimento, combinando, em muitos casos, dados empíricos e fatos com percepções extraídas da poesia, do romance, do teatro.

            As contribuições para se pensar a questão social são antigas, e remontam desde a mais alta antiguidade, passando pela modernidade até chegar na contemporaneidade. Vemos essa análise refletida no pensamento de autores como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Auguste Comte (1798-1857), Karl Marx (1818-1883), Émile Durkheim (1858-1917), Max Weber (1864-1920), Raymond Aron, Pierre Bourdieu, apenas para citar alguns dos mais conhecidos. É importante ter uma clara noção destes diferentes teóricos pois, como afirmam Angélica Madeira e Maria Veloso (apud BOTELHO; SCHWARCZ, 2011, p. 144): o “Pensamento social brasileiro é uma área que se constrói em uma proximidade cada vez maior com a teoria sociológica, clássica e contemporânea – configuração histórica (Elias); Intelligentsia (Mannheim); campo intelectual (Bourdieu) – [...]”. Ou como afirma Luiz Werneck  Viana (então professor da UERJ):

Estudar a presença do liberalismo entre nós remete a Guizot, a Stuart Mill e a Tocqueville, assim como a referência a Marx e a Weber torna-se incontornável nos casos em que a categoria Estado e a formação das classes sociais se apresentam como temas centrais na expressão do nosso pensamento (apud BOTELHO; SCHWARCZ, 2011, p. 145-146).

            Por vezes a análise social está diretamente relacionada com outras áreas, como é o caso da filosofia, da história, da política, da antropologia social, da psicologia e até mesmo da biologia, como é o caso do darwinismo social – a ideia de que na base da sociedade os homens evoluem em um sentido que representa sempre a passagem de um estágio inferior para outro superior, em que o “organismo social” se mostraria mais evoluído, mais adaptado e mais complexo. Além de manter esta abertura interdisciplinar com outras áreas, o “pensamento social” aborda temas variados como a condição democrática/anti democrática do país, cultura, emancipação, reconhecimento, direito à diferença/igualdade, exclusão/inclusão social, a análise da sociedade como um compromisso político, de luta e transformação da realidade posta.

            O estudo e análise da história do pensamento político e social brasileiro tem atraído um grupo de pensadores bastante heterogêneos (CARVALHO, 2007; BRANDÃO, 2007; WEFFORT, 2006) e, como não poderia deixar de ser, é bastante recente. Tal estudo costuma ser dividido, apenas para fins didáticos, em algumas etapas, dentre as quais destacamos: os estudos que primavam pela análise de uma identidade brasileira a partir das “três raças”, sendo que negros e índios permaneceram marginais à raça branca (século XIX até 1930); a retomada dos estudos sobre o “povo brasileiro” (de 1930 a 1964); um recuo dos estudos sobre a história do pensamento político e social brasileiro durante o regime militar (1964 a 1985); desenvolvimento dos cursos de pós-graduação em Ciências Sociais que possibilitou uma (re)interpretação dos estudos “clássicos” do início do século (1986 a 1999); continuidade do estudo do pensamento político e social brasileiro com as comemorações dos “500 anos de descobrimento do Brasil” (RICUPERO, 2007; BRANDÃO, 2007; BOTELHO; SCHWARCZ, 2009).

            Uma análise sociológica do pensamento social brasileiro está diretamente relacionada com o aspecto político, cultural e histórico uma vez que “a dinâmica da formação brasileira implica a compreensão dialética das realidades culturais e políticas” (ALMEIDA, 2011, p. 164). Tal análise pode ser feita a partir da obra de autores como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior (que marcaram a década de 1930).

A obra Raízes do Brasil (1984), marca a década de 30 no que concerne à formação da identidade brasileira. Publicada em 1936, o autor, Sergio Buarque de Holanda, propõe severas críticas a formação oligárquica do país a partir de reflexões sociológicas pautadas na metodologia weberiana (ALMEIDA, 2011, p. 165).

            Costa (1987, p. 152) também analisa a publicação de Raízes do Brasil como um “ensaio sociológico de crítica à formação oligárquica e autoritária das elites culturais e políticas brasileiras” e pondera que “Sérgio Buarque de Hollanda iniciou sua produção intelectual voltada para a crítica literária e para a crítica cultural”.

            Sérgio Buarque de Holanda procurou compreender as estruturas sociais e econômicas do Brasil, denunciando um certo conservadorismo sustentado pela elite brasileira que pouco se importava com a população excluída e às margens da sociedade. “Além de outras coisas, Holanda cunhou críticas ao liberalismo e propôs uma maior participação das massas no processo político como forma de expansão da democracia e o fortalecimento da mesma, numa perspectiva de romper com a tradição colonial” (ALMEIDA, 2011, p. 165).

            É preciso ressaltar que no Brasil, até fins do século XIX, ainda se mantinham práticas escravocratas para fazer gerar a economia de uma civilização rural, que permeou por muito tempo a nossa sociedade. Desse modo, as organizações urbanas dependiam da estrutura vigente das organizações rurais e, mesmo após a abolição, a organização política da sociedade era sustentada por fazendeiros, grandes latifundiários, e aos seus filhos, sucessores diretos das terras familiares, que tinham o poder de dominar e manipular o cenário político, fazendo com que se perpetuasse o domínio dos grandes latifundiários nas esferas públicas. Dominação que excluía e dificultava o acesso da maioria da população à política, pois a elite rural tinha seus pilares solidificados na formação tradicionalista e conservadora, que se estenderam, posteriormente, às organizações urbanas. Essa análise da estrutura social brasileira é o que levou Holanda (2006, p. 76) a afirmar que a grande dificuldade neste caso foi “vestir um país ainda preso à economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa”. Além disso, os traços do patriarcalismo (autoridade patriarcal), tradicionalismo e conservadorismo ajudam a compreender as condições da fragilidade da democracia brasileira.

            Sérgio Buarque também analisa a formação do Brasil a partir da influência ibérica, portuguesa e dos próprios brasileiros, como resultado daqueles com os povos indígenas, deixando uma lacuna no que tange ao papel dos negros na formação do Brasil.

            Gilberto Freyre é outro representante do pensamento social brasileiro dessa época. Nascido em Pernambuco, sua formação intelectual esteve

ligada a uma pós-graduação em ciências políticas, jurídicas e sócias, na Universidade de Colúmbia, nos EUA, onde esteve sob a influência de Franz Boas. Sua tese de mestrado A vida social do Brasil no século XIX redundou em obra de grande repercussão, Casa-grande & senzala, publicada em 1933. Deu continuidade a essa obra com mais dois livros, Sobrados e mocambos e Ordem e progresso. Entendia o nacionalismo como a fusão de raças, regiões e culturas e grupos sociais possibilitada pelas características do colonialismo no Brasil. Destacava, em especial, o papel do negro e do mestiço na adaptação da cultura européia aos trópicos e na formação da identidade cultural brasileira. Freyre acreditava ainda que a Sociologia e a antropologia podiam auxiliar a administração do país, possibilitando a articulação social e da cultura (COSTA, 1987, p. 152 e 153).

            Uma investigação sobre a sociabilidade e cultura do povo brasileiro é encontrada na sua obra Casa Grande & Senzala.

A metáfora da Casa-Grande configura-se enquanto espaço de um país em desenvolvimento, mas com diversos problemas sociais, políticos e até econômicos, pois a atividade preponderante e que impulsiona o autor durante as reflexões desse novo espaço de análise é justamente a monocultura da cana-de-açúcar. Ademais, de posse da análise de um Brasil agrário, a reflexão de Gilberto Freyre resulta na apresentação de uma sociedade patriarcal, escravista e mestiça (ALMEIDA, 2011, p. 168).

            Esta discussão remete-nos à compreensão histórica e cultural do processo de colonização aliado ao processo de miscigenação entre brancos, índios e negros em torno de uma identidade brasileira que gerou opiniões antagônicas entre as várias correntes de pensamento e alimentou o debate em torno de questões como “raça”, “miscigenação” e “cultura”.

            Se por um lado alguns autores consideravam positivas as relações inter-raciais para a formação social do povo brasileiro, buscando revelar os verdadeiros valores desses grupos, separados dos traços de raça e identificados aos efeitos do meio social e da experiência cultural, por outro lado, havia os que consideravam a miscigenação como fator de atraso e subdesenvolvimento e consideravam que todos os problemas do país estavam relacionados não tanto às diferenças sociais e culturais, mas aos próprios atributos de (im)pureza das “raças”. O mestiço era visto como um elemento nocivo à sociedade e a ideia de “superioridade” racial do branco era muito forte entre as elites brasileiras e considerada por muitos intelectuais como princípio “cientifico”.

            Um exemplo dessa espécie de “ideologia do branqueamento” que considera a raça branca como sendo superior as demais raças pode ser vista, por exemplo, no campo da saúde.

            Ainda desse período temos Caio Prado Júnior que

iniciou seus estudos a partir de uma historiografia de caráter social, onde procurava formalizar o método marxista para a análise da realidade brasileira. Sua primeira obra importante, Evolução política do Brasil, editada em 1933, procurava definir a situação colonial brasileira a partir das relações internacionais capitalistas e seus mecanismos comerciais, desde a expansão marítima européia. Entendeu o Brasil do século XX a partir de sua situação colonial originária. Foi fundador da Revista Brasiliense, que dirigiu durante muitos anos. Em 1942 escreveu outra obra de grande repercussão, Formação do Brasil contemporâneo (COSTA, 1987, p. 152).

            Avançando no tempo temos que “A década de 50 é marcada por dois grandes pensadores responsáveis pela formação de duas grandes correntes do pensamento social brasileiro, cujas repercussões são sentidas até hoje: Florestan Fernandes e Celso Furtado” (COSTA, 1987, p. 155).

            Celso Furtado é apontado como o fundador da economia política brasileira, enfatizando o papel do Estado na economia adotando um modelo de feições keynesianas. Furtado doutorou-se em 1948 em economia na Universidade de Paris-Sorbonne, com uma tese sobre a economia brasileira no período colonial.

            Florestan Fernandes, um dos mais importantes sociólogos brasileiros, nasceu em São Paulo, em 22 de julho de 1920. Desde muito cedo precisou trabalhar para viver e não pôde sequer completar o curso primário. Apesar das dificuldades conseguiu ingressar no curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Lecionou na USP até 1969 – quando foi aposentado compulsoriamente pela ditadura militar – formando várias gerações de cientistas sociais. Deu aula em diversas universidades estrangeiras e, em 1976, voltou a lecionar no Brasil, na PUC de São Paulo.

            Florestan Fernandes desenvolveu uma importante pesquisa sobre negros e a questão racial no Brasil. Influenciado sobretudo pelo marxismo, se autodenominava ‘sociólogo militante’ procurando unir a teoria à prática.

            É o fundador e principal representante da Sociologia crítica do Brasil. Em todo o seu trabalho ele procura refletir sobre as desigualdades sociais, desvendando as contradições da sociedade de classes, e também sobre o papel da Sociologia diante dessa realidade. Assim, não apenas em seus livros, mas também em cursos, conferências e artigos na imprensa, procura desenvolver e aprofundar a reflexão crítica sobre a realidade brasileira, com suas enormes desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais.

            Sua própria história de vida explica essa posição crítica: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado, através das duras lições da vida (...). Iniciei a minha aprendizagem ‘sociológica’ aos 6 anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana.”

            De sua imensa obra, destacam-se: A organização social dos Tupinambá (1949, Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1963), A integração do negro na sociedade de classes (1965), Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina (1973), A natureza sociológica da Sociologia (1980).

            Nas eleições de 1986, foi eleito deputado constituinte pelo PT. Em 1990 foi reeleito deputado federal. Florestan Fernandes faleceu em 1995.

            Por fim, temos Darcy Ribeiro, romancista, etnólogo e político, se envolveu com a questão indígena, condenando toda ortodoxia a partir de uma linha marxista, buscando as raízes históricas da população indígena. Foi o criador e primeiro reitor da UnB (Universidade de Brasília) e Ministro da Educação no Brasil, realizando profundas reformas no sistema educacional brasileiro. Obrigado a deixar o Brasil em razão da ditadura militar de 1964, foi convidado a participar de reformas universitárias em países como o Chile, Peru, Venezuela, México e Uruguai.

            A ditadura militar promoveu uma estagnação no desenvolvimento do pensamento social brasileiro.

A ditadura militar arrogou-se a missão de prosseguir a modernização capitalista a qualquer custo, através do lema ‘desenvolvimento e segurança’. Nos interesses da ‘segurança’, foram expurgados todos os intelectuais que não compactuassem com o regime. Foi a época da aposentadoria compulsória para uns, e o exílio, para outros, entre eles Florestan Fernandes, Octavio Ianni, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Celso Furtado (COSTA, 1987, p. 158).

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Antônio C. S. A formação político-cultural do Brasil: excertos do pensamento de Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Ponto-e-vírgula, 9, p. 163-171, 2011. Acesso em 20/08/2018.

BOTELHO, A.; SCHWARCZ, L. M. (Org.). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia M. Simpósio: cinco questões sobre o pensamento social brasileiro. Lua Nova, São Paulo, 82, p. 139-159, 2011. Acesso em 20/08/2018.

BRANDÃO, G. M. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007.

CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Temas sobre a organização dos intelectuais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 22, no. 65, pp. 17-31, 2007. Acesso em 20/08/2018.

COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia – Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo: Moderna, 1987.

FREITAS PINTO, Renan. O Pensamento Social de Djalma Batista. Revista da Academia Amazonense de Letras. Manaus, n º 24, p. 144-152, nov. 2002.

HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.

RICUPERO, B. Sete lições sobre as interpretações do Brasil. São Paulo: Alameda, 2007.

WEFFORT, Francisco. Formação do pensamento político brasileiro: ideias e personagens. São Paulo: Editora Ática, 2006.

 

Ciência Política Sociedade e Estado → Pensamento social brasileiro