Cidadão do Século XXI
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em 2015
atualizado em: jul. 2019
O ser humano dá os seus primeiros passos no século XXI, e hoje o seu mundo é marcado por uma intensa crise. O seu cotidiano é marcado pela crise do trabalho, desigualdades sociais, das imigrações, do xenofobismo, da violência, do consumo, do neonazismo, do aquecimento global, crise do petróleo, crise da água, enfim, crise da sociedade humana. Mas, não devemos esquecer que ele ainda é o ator transformador de sua própria história. No seu status de cidadão existe a perspectiva da mudança, da revolução, no seu cotidiano traduzido pela dinâmica das relações sociais, estabelecendo uma possibilidade de convivência dos diferentes. Assim, na construção de sua práxis, baseado na luta e conflitos sociais que o impulsionam as suas conquistas, buscando um ideal de mundo. Todos os momentos da história contaram com a participação desse ator, o cidadão. Não poderia ser diferente na atualidade.
É preciso considerar que a cidadania é algo construído no cotidiano dos seres humanos e que, se não nos educamos, pensamos e refletimos, somos facilmente manipulados. É no ato da cidadania e de sua reflexão que ela é construída.
Apoiando-nos na visão aristotélica diríamos que a definição mais correta para esse novo cidadão do século XXI é o zoon politikon, ou o animal político. Isolados, o raciocínio ou a socialização não dariam a condição necessária para a sua sobrevivência; é na conjunção desses dois fatores, juntamente com o poder do debate através da discussão e do direito à fala, que ele inicia sua história. Ser cidadão na concepção aristotélica implica não bastar simplesmente ser homem livre; é necessário também ter qualidades que estejam em conformidade com as designações do Estado, com aquilo que o constitui como tal e que deve ser obedecido.
A imagem que temos do filósofo Sócrates também nos ajuda a entender como podemos exercer a nossa cidadania. A imagem que predomina de Sócrates
é a de um filósofo em ação e sobretudo da ação: um cidadão que agiu sobre outros cidadãos falando, conversando e discutindo com eles; um cidadão que sustentou e defendeu a palavra falada, viva (em contraposição à palavra escrita, que tinha na conta de morta), como meio de ação na e para a pólis (GOTO, 2010, p. 114).
Se por um lado Sócrates se absteve da política de Estado, por outro lado tomou para si, como missão, a tarefa de exortar os atenienses a buscarem a verdade, a sabedoria e a virtude: “parte da missão de que se considerava investido e que o fazia exortar os concidadãos a buscarem a areté [virtude]. Nesses casos, justamente, ele os educava politicamente pela ação, pelo exemplo – mais por atos do que por palavras” (GOTO, 2010, p. 113 grifo do autor).
Sócrates não era um animal político no sentido restrito do termo, daquele que toma parte da administração da cidade, mas em um sentido amplo, de cidadão da polis, “de sua convivência com os concidadãos, o que compreende necessariamente o trabalho socrático com os valores e os conceitos, simultaneamente ético e epistemológico” (GOTO, 2010, p. 113).
O agir de Sócrates é um agir próprio de uma sociedade democrática. Com sua retórica e oratória, exortando os cidadãos atenienses a que hajam de tal forma e não de outra. Sócrates coloca em prática sua liberdade de expressão. Não há outra filosofia que não seja mais conforme uma sociedade democrática do que a filosofia socrática:
que na verdade não contém nada, nenhuma doutrina, nenhuma escrita, a não ser uma prática, uma ação que se efetiva pela fala, abrindo espaço em meio aos preconceitos mediante o trabalho de “interrogar, examinar e confundir” (ibidem, 29e), mantendo-se ela própria sempre aberta, já que, no fim das contas, não afirma nada – apenas que nada sabe... (GOTO, 2010, p. 120).
Sócrates era um modelo de filósofo público, da praça pública, que exerce a filosofia como um exercício de cidadania, um agir cidadão e uma prática democrática.
Esse procedimento pode não ser agradável a todos, como sucedeu com Sócrates, que por isso foi condenado à morte. As acusações contra Sócrates de impiedade, ateísmo ou corruptor da juventude eram apenas uma cortina de fumaça: “Meleto, Ânito e Lícon se mancomunam para atacar Sócrates porque tomam as dores daqueles que ele submetera ao seu interrogatório inquiridor” (GOTO, 2010, p. 118).
a tese que o Sócrates da Apologia platônica apresenta e sustenta do começo ao fim de sua defesa, inalterável e inabalavelmente, é o procedimento que adota no cumprimento de sua missão que atiça “a calúnia e o rancor de tanta gente” (Defesa de Sócrates, 28a). É também ao procedimento dos concidadãos que ele visa, ao “andar por aí” procurando persuadi-los, “moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma” (ibidem, 30a). Igualmente, era seu agir e proceder que desmentia que pudesse ser ímpio ou corromper a juventude, pois sua prática investigativa estava a serviço do deus Apolo e ele, Sócrates, “nunca” foi “mestre de ninguém” (ibidem, 33a) (GOTO, 2010, p. 118).
Sócrates tinha essa tarefa na conta de uma missão, uma tarefa que lhe fora confiada pelo deus Apolo: “assim agindo, contribui para o bem da pólis, a despeito da oposição e do ódio que muitos cidadãos lhe votam; é assim que exerce sua cidadania, publicamente, não ofendendo as leis da cidade” (GOTO, 2010, p. 121).
Filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Rousseau e Karl Marx entendiam que o homem é um ser social. E hoje sabemos que este ser social é dotado de direitos fundamentais, que o permitem ser ativo na sociedade. Assim, como agente social que é, deve ter assegurados determinados direitos, como os políticos, sociais e econômicos, que o transformam em ator da história de sua cidadania. O homem, ao longo da evolução das relações sociais, se viu transformado em “coisa”, sendo usado como escravo, servo ou mesmo depois, através do trabalho assalariado, ainda tem vivido uma condição de explorado.
A condição da cidadania é política, não uma política Ideológica, mas aquela que é construtora da expressão humana. Mas a perspectiva de uma “nova” cidadania é que ela se torne participante (cidadania participativa dentro de um modelo de Democracia Participativa) não só no âmbito da política, mas que esteja também envolvida na preservação do meio-ambiente, da solidariedade entre os povos, na tolerância religiosa e racial. A cidadania do século XXI necessita de ética e de esperança para que possa realmente haver uma transformação de fato que atinja a todos no presente e nas gerações futuras.
É preciso salientar que não se pode compreender a cidadania como uma condição estática, definitiva ou acabada. Ela é dinâmica e está em constante construção; assim como o mundo não pára, ela deve ser a representação desse mundo. As transformações têm uma grande probabilidade de sucesso quando os cidadãos fazem parte do seu processo. O dinamismo da sociedade implica um processo transformador com o cidadão desempenhando seu papel, bem definido e assumido.
A cidadania se concretiza na efetiva participação (que pressupõe responsabilidade e assunção da coletividade) e no gozo dos direitos individuais e sociais. A participação se faz real quando adquirimos a consciência de que o bem comum é a garantia do individual. Por isso, é imprescindível ouvir a sociedade organizada: Movimentos Sociais, sindicatos, partidos, organizações sociais, Organizações Não-Governamentais (ONGs), processos eletivos etc., tendo na representatividade, uma forma de ação política em que a coletividade se sobrepõe ao individual.
O indivíduo que se anula perante a coletividade não se faz partícipe do processo, não assume seu papel de ator social, falta-lhe um mínimo de cultura política necessária para a conscientização do processo do qual faz parte. Ele necessita da reflexão sobre quem é e a que grupo pertence. Quando realmente se encontra como cidadão participante de uma sociedade, ou tem consciência de que a sua participação tem importância na construção dessa sociedade, deixa de se anular para participar dela.
Ao refletirmos sobre a construção de uma nova cidadania do século XXI percebemos que ela é uma construção histórica da representação social e política da nossa cultura ocidental. Vivemos em crise, é verdade, mas afinal, quando o ser humano não esteve em crise? Essa manifestação de insatisfação nada mais é do que a marca de um momento histórico: crise da fé, crise da liberdade, crise da ciência, crise da razão enfim, crise humana. No entanto, o ser humano sobreviveu a todas as crises às quais já esteve submetido e (re)construiu o mundo em que vive. E a perspectiva de um novo século traz também a esperança de uma nova proposta humana.
Referência
GOTO, Roberto. O cidadão Sócrates e o filosofar numa democracia. Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 1 (61), p. 107-125, jan./abr. 2010. Acesso em: 28 jul. 2019.
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