Bioética
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em mar. 2025
De modo geral, a bioética pode ser definida como o conjunto de reflexões morais que servem para direcionar a pesquisa científica envolvendo seres humanos e não humanos, além de melhorar a qualidade de vida e o viver dos seres vivos, através de princípios, direitos e virtudes que norteiem a adequação das ações na pesquisa científica.
Costuma-se atribuir o surgimento da bioética à década de 1970 quando Van Rensselaer Potter (1971), oncologista da Universidade de Wisconsin, utilizou o termo em seu livro Bioethics: bridge to the future (Bioética: uma ponte para o futuro). “Trata-se de uma coletânea de artigos, entre os quais se destaca Bioética: a ciência da sobrevivência, que define a bioética como a ‘ciência da sobrevivência humana’” (Costa, 2008, p. 26). Nesta obra, podemos destacar as seguintes ideias: “a ética humana não pode estar separada de uma compreensão realista da ecologia em um sentido amplo. Valores éticos não podem estar separados de fatos biológicos” (Potter, 1971 apud Diniz; Guilhem, 2002, p. 13 – grifo das autoras). Temos aqui a conjugação de dois ingredientes que, do ponto de vista da bioética, devem ser considerados fundamentais: a associação entre o conhecimento biológico (entendido em sentido amplo, como o bem-estar dos seres humanos, dos animais não humanos e do meio ambiente) e valores humanos (a ética).
Em seguida, o obstetra, demógrafo e professor da Universidade de Georgetown, Andre Hellegers, também utilizou a palavra bioética para denominar um campo da ética biomédica, destacando-se por designar a bioética como uma nova área de atuação.
Contribuiu para o desenvolvimento do campo da bioética as inúmeras denúncias relacionadas com as pesquisas científicas envolvendo seres humanos, como aconteceu no caso do nazismo e inúmeras outras experiências entre as décadas de 1930 e 1970 (veja mais em: Breve História da Pesquisa Envolvendo Seres Humanos).
Em 1976, o filósofo Samuel Gorovitz organizou a publicação da obra Problemas Morais na Medicina, relacionando, como o próprio título sugere, os estudos éticos com situações médicas conflituosas (como o aborto e a eutanásia). “A iniciativa desse livro marcou, pela própria composição dos autores, a proposta interdisciplinar da bioética: médicos e filósofos foram convidados a expor suas opiniões e argumentações sobre temas clássicos de conflito moral na saúde” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 35).
Um dos acontecimentos mais ousados na bioética aconteceu em 1978, com a publicação da obra Encyclopedia of Bioethics (Enciclopédia de bioética), editada por Warren Reich. “Nessa obra, que se tornou referência para o estudo da bioética, o editor Warren Reich (1978) organizou mais de três centenas de artigos inéditos” (Costa, 2008, p. 26). A versão mais atual, de 2004, contém 110 novos verbetes. É dessa última versão a definição de bioética dada pelo novo editor Stephen Garrard Post, substituto de Warren Reich, entendida “como o exame moral interdisciplinar e ético das dimensões da conduta humana nas áreas das ciências da vida e da saúde” (Costa, 2008, p. 27).
Também no ano de 1978 um fato importante para o desenvolvimento da bioética foi a publicação, nos EUA, do documento conhecido como Relatório Belmont. O Relatório Belmont consolidou a bioética (mais precisamente a bioética principialista) e a ética em pesquisa como campos indispensáveis para a prática científica e introduziu “a linguagem dos princípios éticos ao exigir que toda pesquisa seja respeitosa com as pessoas, benéfica para a sociedade e equânime em seu balanço entre riscos e benefícios” (Kottow, 2008, p. 13). Os participantes do Relatório Belmont elegeram três princípios que consideraram fundamentais na análise dos dilemas morais envolvendo a pesquisa científica que foram: respeito pelas pessoas, beneficência e justiça.
A divulgação do Relatório Belmont representou um verdadeiro divisor de águas para os estudos de ética aplicada. A estruturação mínima proposta pelo relatório, representada pela eleição dos três princípios éticos, foi o pontapé inicial que a bioética necessitava [...] teve início a formalização definitiva da bioética como um novo campo disciplinar (Diniz; Guilhem, 2002, p. 34-35).
Estes princípios apareceram novamente em 1979, com a publicação do livro Princípios da Ética Biomédica, do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, onde elaboram a primeira teoria do novo campo disciplinar e analítico denominada Bioética Teoria Principialista. Vale salientar que Beauchamp participou da elaboração do Relatório Belmont. Este livro “foi a primeira tentativa bem sucedida de instrumentalizar os dilemas relacionados às opções morais das pessoas no campo da saúde e da doença” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 38). Recebeu este nome por ser baseada em princípios éticos considerados como fundamentais para a bioética. Inspirados nos princípios do Relatório Belmont, a obra definiu os princípios da beneficência e justiça, acrescentou o princípio da não maleficência e o princípio do respeito às pessoas passou a denominar-se princípio da autonomia, ficando desta forma estabelecidos:
- Beneficência: análise criteriosa entre riscos e benefícios (garantia do máximo bem-estar em detrimento de danos para participar de uma pesquisa); minimização dos riscos e aumento dos benefícios;
- Não maleficência: Garantia de que os danos previsíveis serão evitados;
- Justiça: (garantir mecanismos equitativos na implementação dos protocolos – da participação na pesquisa à distribuição dos resultados); relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos e igual consideração dos interesses;
- Autonomia: Respeito ao livre exercício da autonomia do voluntário; consentimento voluntário dos indivíduos ou proteção dos vulneráveis e legalmente incapazes
Do ponto de vista filosófico, os autores de Princípios da Ética Biomédica buscaram inspiração em algumas ideias clássicas do pensamento filosófico ocidental.
Eles sugerem que a teoria principialista teria assumido como orientação básica os modelos éticos utilitarista, de que David Hume, Jeremy Bentham e John Stuart Mill teriam sido a inspiração, e deontológico, baseado na ideia de certos filósofos gregos, tais como Aristóteles e Hipócrates, e mais profundamente em Immanuel Kant (Diniz; Guilhem, 2002, p. 44).
A influência kantiana pode ser vista, por exemplo, na discussão sobre o princípio da autonomia e a existência de uma pessoa autônoma. O princípio da beneficência tem raízes na filosofia utilitarista, sobretudo de John Stuart Mill. O princípio da não-maleficência é herdeiro da tradição deontológica hipocrática, “associado à máxima primum non nocere – ‘acima de tudo, não cause danos’” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 49, grifo das autoras). O princípio de justiça encontra raízes em toda a tradição filosófica ocidental. Vários filósofos se ocuparam deste tema, com ênfase para as obras A República de Platão e Ética a Nicômaco de Aristóteles. Mas aqui merece especial atenção a teoria da justiça de John Rawls.
Entre as décadas de 1970 e 1980 destacam-se Peter Singer e Tristram Engelhardt. O filósofo australiano Peter Singer destacou-se no campo da bioética, tanto pelo fato de ter sido presidente da Associação Internacional de Bioética (IAB), quanto pela criação conceitual do termo especismo e sua crítica a visão ideológica de que os humanos são superiores aos outros animais, colocando em discussão o comportamento humano diante dos animais não humanos por considerar que os interesses de sua espécie são superiores aos interesses dos membros de outras espécies. Peter Singer foi o filósofo que mais promoveu o princípio da igualdade moral entre seres humanos e animais. Ele publicou as obras: em 1975, Liberdade Animal; em 1979, Ética Prática; e, em 1988, Deve o Bebê Viver? A Questão das Crianças Deficientes. Além do especismo, Singer é conhecido por discutir temas como o aborto, o suicídio assistido e a eutanásia. “Ao defender suas convicções no campo da bioética, Singer pauta-se na premissa clássica do utilitarismo que mensura como as ações consideradas éticas estariam aumentando ou diminuindo a felicidade coletiva” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 91).
Tristram Engelhardt é autor das obras Questões Morais em Medicina e Os Fundamentos da Bioética. Engelhardt deu ênfase aos princípios da autonomia e da beneficência e, posteriormente, rebatizou o princípio da autonomia como princípio da permissão. A permissão é entendida como “condição básica para a sobrevivência coletiva entre diferentes morais, pois somente a partir do consentimento individual as decisões poderiam ser julgadas como eticamente aceitáveis ou não” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 82).
Na década de 1990 surgiram as primeiras correntes críticas da teoria principialista. Em 1990, Danner Clouser e Bernard Gert publicaram o artigo A critique of principlism, com críticas contundentes ao modelo principialista questionando “como os profissionais poderiam solucionar problemas éticos valendo-se de quatro princípios gerais e abstratos” (Souza, 2008, p. 40). Clouser e Gert questionaram também a ausência de algo que pudesse unificar os quatro princípios da teoria principialista e que pudesse dar uniformidade à teoria, fazendo com que decisões sobre questões morais envolvendo a pesquisa com seres humanos dependessem de julgamentos particulares sobre a importância de cada princípio. “Ao inexistir uma conexão entre eles, cada princípios pressupõe uma soberania em relação aos outros, havendo uma espécie de disputa” (Diniz; Guilhem, 2002, p. 58). Podemos citar como exemplo o caso do fumo: deve-se respeitar a autonomia do indivíduo e não proibi-lo de fumar ou, em nome da beneficência, impedi-lo de comprar cigarros e assim evitar um possível quadro de infecção pulmonar? O que pode determinar o porquê escolher um princípio em detrimento do outro?
Nos últimos anos, a elaboração de diretrizes éticas em pesquisa libertou-se do principialismo. O marco mais recente na ética em pesquisa foi a promulgação em 2005 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos e hoje, devemos considerar que os princípios da bioética devem sempre ser considerados no âmbito de toda e qualquer pesquisa que envolva seres humanos ou animais não humanos.
Referências
COSTA, Sérgio. O desafio da ética em pesquisa e da bioética. In: DINIZ, Debora; et. al. (Orgs.). Ética em pesquisa: temas globais. Brasília: Letras Livres: Editora UnB, 2008.
DINIZ, Debora; GUILHEM, Dirce. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2002. (Coleção Primeiros Passos)
KOTTOW, M. História da ética em pesquisa com seres humanos. R. Eletr. De Com. Inf. Inov. Saúde - RECIIS, 2(Sup.1), 2008. Acesso em: 06 mar. 2025.
Sugestões Bibliográficas
DRANE, J.; PESSINI, L. Bioética, medicina e tecnologia. São Paulo: Loyola, 2005.
ENGELHARDT, H. T. Fundamentos da bioética. Tradução: José A. Ceschin. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1998.
GARRAFA, V.; PESSINI, L. (Org.). Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Loyola, 2003.
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