Apogeu e Queda da Democracia Mediada
Notas sobre Sociologia da Comunicação & Política Pós Moderna[1]
RESUMO: Este texto resume o pensamento dos principais teóricos atuais em torno do enquadramento político e sociológico da mídia na Democracia contemporânea. Discute-se aqui a relação entre cidadania moderna e posição ideológica, ancorado na filosofia político de Norberto Bobbio e na proposta de uma ‘política de Terceira Via’ defendida por Anthony Giddens. Em seguida, apresenta-se as noções de Eleitor-consumidor (proposta por Flavio Silveira), de Democracia Deliberativa Mediada e de Imagem Pública (elaboradas por John Thompson). Também se problematizam a noção de inteligência coletiva, criada por Pierre Levy e desenvolvida por Henry Jenkin; e o surgimento das Redes Sociais e Digitais com os novos movimentos sociais, descritos por Manuel Castells;.
PALAVRAS-CHAVE: Ciências Sociais Aplicadas1; Comunicação midiática2; Sociologia das mídias3;
INTRODUÇÃO
Na revolução francesa, os girondinos sentaram à direita; e os jacobinos, à esquerda. Para Noberto Bobbio (2001), tal fato caracterizou Ideologicamente toda história política que se seguiu. A direita representa os que defendem a liberdade individual acima da igualdade social entre indivíduos; a esquerda corresponde aos que advogam a primazia da igualdade de todos sobre a liberdade de cada um. Os dois lados políticos são assim polos da contradição moderna entre liberdade e igualdade.
Assim, por exemplo, pode-se dizer que Nietzsche é um filósofo existencialista 'de direita' quando afirma que os homens são diferentes perante Deus e Estado; que a igualdade jurídica entre indivíduos é uma mentira (1998). Por outro lado, também se pode dizer que Sartre é um existencialista 'de esquerda' porque acredita que cada homem é um 'universal singular', uma miniatura diferenciada do universo, ao lado de outros universos singulares (2014).
Porém, a contradição política entre direita e esquerda não é apenas discursiva (e filosófica); ela é ideológica e está encravada na prática política, nas formas de representação da sociedade moderna. Na verdade, pode-se dizer que toda política moderna se baseia na luta entre essas duas práticas políticas contrárias.
Para Bobbio, que era Liberal e Socialista, quando uma sociedade pendia demais para esquerda, tornava-se totalitária em nome da igualdade; e, quando se fixava na direita, se tornava injusta e desigual em nome da liberdade. O ideal, então, seria o equilíbrio complementar entre as duas práticas, o centro, a fraternidade, a única capaz de observar qual a melhor posição no momento para cada situação (movimento pendular) e de negociar pragmaticamente soluções e compensações caso a caso. O centro seria assim menos ideológico e mais prático, ou mais responsável e orientado por objetivos e estratégias do que por convicções e valores, para citar as éticas políticas de Weber (2004, 112-116).
Também é preciso lembrar que, como princípios norteadores da ação política moderna a partir da revolução francesa, a liberdade e a igualdade são mediadas pela fraternidade. Mas que, como sociabilidade arcaica, a fraternidade é anterior à luta política pela liberdade e pela igualdade - movimentos colaterais opostos recentes. Entendida como princípio de reciprocidade (não fazer aos outros, o que não se deseja para si próprio), a fraternidade é um preceito universal, presente em todas as religiões e filosofias éticas. Pode-se até atribuir a versão normativa de sua inversão – a lei de talião: “olho por olho, dente por dente” – à primeira regulamentação da vida social.
Em relação ao modelo de Democracia Deliberativa, pode-se dizer: que a igualdade jurídica entre indivíduos é representada pelo Estado; que a liberdade é um atributo e uma exigência do Mercado; e que a Sociedade Civil encarna o princípio da solidariedade fraterna. O tripé da estrutura política moderna oscila entre as tentativas do Mercado de segmentar a Sociedade Civil e do Estado de ampliar a esfera pública através das comunidades. Na verdade, a ideia de fraternidade relativizar a igualdade jurídica entre indivíduos e limitar a liberdade de ação de sujeitos individuais e coletivos também vem crescendo e se modificando com decorrer do tempo.
A Era Giddens
Anthony Giddens[2] retoma a reflexão de Bobbio, mas, socialdemocrata, discorda no movimento pendular do centro, apontando para uma ‘terceira via’: nem a regulamentação econômica com anarquia moral – como quer a esquerda; nem a anarquia econômica com fortes controles morais – como deseja a direita.
ESQUERDA |
DIREITA |
Defende intervenção econômica do Estado |
Liberdade de Mercado |
Liberdade total para vida sexual e familiar |
Moralismo tradicional, regulamentação da vida civil |
O crime é produto da desigualdade social |
O crime resulta da desagregação familiar resultante da entrada das mulheres no mercado de trabalho. |
Com a proposta de uma Política de Terceira Via (2001a, 2001b), Giddens elabora uma resposta ao impasse entre a Social Democracia tradicional (o keynisianismo e o estado do bem-estar social) e o neoliberalismo (ou o estado mínimo e aberto às trocas externas) com a ampliação do papel desempenhado pela Sociedade Civil. Nem a auto regulação selvagem dos mercados, nem o Estado inoperante e falido; apenas democratização da Democracia pode mediar o conflito entre os interesses econômicos e políticos. A política de Terceira Via seria essa despolarização pragmática do modelo esquerda x direita, em que planejamento e a liberdade se combinem criativamente. Este realinhamento dos extremos desemboca na ideia de uma política sem inimigos. Para esquerda, os maus são os Capitalistas, o mercado, as grandes corporações, os EUA, etc; para direita, os maus são: o estado inchado, o relativismo cultural, os imigrantes e os criminosos. “Mas não há uma fonte concentrada dos males do mundo: temos que deixar para trás a política de redenção” (GIDDENS, 2001a, p.45). E essa 'política sem inimigos', acima da direita e da esquerda, é também um forte argumento eleitoral.
Muitos são os que minimizam a importância das ideias de Giddens, mas a verdade é que ela é enorme tanto diretamente - no Partido Trabalhista britânico, no Partido Democrata dos EUA e em todos os partidos socialdemocratas ocidentais que seguem explicitamente sua orientação; como indiretamente, através de imitadores inconfessos de diferentes tipos, professando ‘novas políticas’ sem os velhos polos extremos opostos ideológicos.
Navegando entre a autonomia cosmopolita e a dependência fundamentalista, entre o público e o privado, entre a Social Democracia e o neoliberalismo (e entre outros opostos); a política de Terceira Via ajudou a terceirizar o estado (diminuir seus custos sem prejuízo do setor social), através de organizações não governamentais, políticas público-privadas e redes de agentes temporários. Por outro lado, também inspirou reformas previdenciárias e flexibilizações nas legislações trabalhistas, sequestrando direitos de trabalhadores e aposentados em todo mundo.
Giddens (2003) analisa dois grupos de pensamento sobre Globalização o fenômeno: os ‘céticos e/ou fundamentalistas’, que acham que a globalização não traz nada de novo: é apenas o desenvolvimento imperialismo norte-americano; e os ‘radicais cosmopolitas’, que acreditam que ela está mudando tudo, destacando a onda mundial de adaptação econômica dos ‘países em desenvolvimento’ à dinâmica do mercado global, bem como a influência cultural desses países em relação aos ‘países já desenvolvidos’. A essa contra influência o autor denomina de ‘colonização inversa’. Com a Globalização, as ações não são mais locais, mas têm repercussões mundiais. Repercussões que, ao mesmo tempo em que mudam as estruturas sociais, interferem na identidade do cidadão que se encontra no cerne da luta entre dependência e autonomia, entre fundamentalismo territorial e cosmopolitismo sem raízes.
Porém, a principal deficiência da política de Terceira Via é a incompreensão sobre o novo comportamento político mediado e na transformação do cidadão moderno em um consumidor de informação. Giddens até reconhece (2003) a importância dos meios de comunicação para o funcionamento da Democracia, mas não compreende sua relação com o sistema de representação e seu efeito no comportamento político.
O eleitor-consumidor e a cidadania midiática
Flávio Silveira (1998) subdivide os comportamentos políticos em três grupos: comportamento não racional tradicional (baseado na lealdade, na tradição e em relações de dependência duráveis); comportamento racional (ideologicamente orientado, com ênfase em objetivos e estratégias); e novo comportamento não racional (baseado na sensibilidade individual de caráter instável e volúvel). Segundo o autor, este terceiro tipo de comportamento político desenvolvido a partir da linguagem da mídia, está se generalizando e tende a se tornar dominante.
A diferença entre os antigos e os novos tipos de comportamentos não racionais é que, enquanto o comportamento tradicional é uma relação durável, repetida, contínua, com laços de lealdade; o novo comportamento midiático é instável, mutável, descontínuo, volátil. O primeiro se baseia em uma interação social que envolve dependência, subordinação e até coerção; o segundo implica em uma autonomia individual relativa e em uma liberdade de decisão limitada. O antigo comportamento não racional implicava em uma perda da identidade, no qual se tinha uma confiança incondicional; enquanto o novo comportamento eleitoral não racional é uma afirmação da própria identidade, uma consulta à sensibilidade, que pode levar ao apoio ou à reprovação circunstancial dos atores políticos.
Outra distinção sustentada por Silveira é a diferença entre o comportamento racional e o novo comportamento não racional. O comportamento de tipo racional é aquele que defende seus interesses de forma lógica, geral, tomando decisões calculadas a partir de conteúdos políticos; enquanto, “a nova escolha não racional” é formada por decisões imediatas e volúveis, motivada a partir de imagens e símbolos, uma compulsão ao apelo emocional travestido de uma consulta à sensibilidade e ao bom gosto do eleitor. Silveira afirma que o comportamento racional é resultante de critérios objetivos universais, enquanto o comportamento midiático é fruto de critérios subjetivos, singulares; que, enquanto um crê na representação conceitual da realidade e na veracidade dos fatos de forma abstrata, geral e homogênea, o outro constrói uma representação simbólica do mundo com base na autenticidade de várias referências concretas e heterogêneas.
Na verdade, Silveira faz uma interpretação das ideias de Max Weber, traçando uma correspondência entre as “formas de dominação legítima – tradicional, legal e carismática” (WEBER, 1992, p. 349-359) - com seus tipos de comportamento político eleitoral. Max Weber acreditava na crescente burocratização das sociedades modernas e no predomínio da racionalidade por objetivos, em detrimento das formas de dominação legítimas tradicionais, enquanto Silveira observa um crescente predomínio do comportamento midiático ou de uma dominação legítima do tipo carismática – o que, segundo o autor, ameaça à Democracia Representativa, ou seu modelo parlamentar baseado na racionalidade política. (SILVEIRA, 1998, 230)
O eleitor-consumidor não vende seu voto por favores ou dinheiro; nem tampouco acredita em partidos políticos e nos seus programas eleitorais. Ele vota na imagem do candidato, vota na pessoa humana em que mais confia, vota no que vê na mídia e no que conversa com os amigos. O novo comportamento não racional proposto por Silveira é apoiado em pesquisas de opinião quantitativa e de volatilidade eleitoral, que apontam para uma crescente imprevisibilidade (que não havia nos comportamentos clientelistas e de identificação partidária).
O novo comportamento midiático passou a se reorganizar parcialmente pela gramática específica da linguagem dos meios de comunicação (com ênfase na novidade, no inusitado e em padrões estéticos), produzindo uma cultura política centrada no consumo de imagens, gerando novas competências, como marketing (que adapta a política às preferências do público através de pesquisas) e se baseia na similitude aparente entre audiência e eleitorado (entre a opinião pública e o mercado consumidor). A mídia promoveu uma des-ideologização da política, do paradigma direita-esquerda e os programas se tornaram muito semelhantes em suas propostas práticas (organizados a partir de pesquisas de opinião sobre as preferências do eleitor).
O critério principal do voto passa então a ser ‘quem’ e não ‘o que’ – uma vez que todos dizem praticamente a mesma coisa. Houve uma personalização da política; a confiabilidade e a honestidade se tornaram pré-requisitos decisivos nas escolhas eleitorais – e não a posição do candidato. Há ainda vários outros aspectos negativos dessa des-ideologização carismática da política: a redução das diferenças a gostos, a imagem como inimiga do pensamento abstrato, a linguagem da TV como empecilho à polêmica argumentativa.
O resultado? O crescente desinteresse do público mais informado; o caráter artificial da opinião pública; a perda de autenticidade dos agentes e das instituições de representação política; e, principalmente, a substituição parcial dos partidos e das instituições políticas representativas pelos meios de comunicação no debate e na defesa dos interesses da população. A mídia, na modernidade, sequestrou o 'lugar da fala' da autoridade pública e religiosa. Nas culturas pré-modernas, a informação era distribuída unicamente a partir dos estados e das igrejas.
Ao se estabelecerem instituições de mediação com autonomia relativa (a ampliação da esfera pública de Habermas), o 'monopólio da fala' foi terceirizado.
Assim, a mídia é, ao mesmo tempo, um campo aberto para o diálogo direto entre os atores políticos e o público; e também mais um ator político com interesses próprios em um contexto social mais amplo. Ela é simultaneamente um campo para os agentes políticos e um agente social invisível que seleciona, hierarquiza e dá visibilidade aos acontecimentos.
Os campos da Política e da Comunicação se interpenetram numa relação recíproca, mais ambos preservam suas especificidades; nem a política se submete completamente à visibilidade da mídia, nem os meios de comunicação são meros instrumentos ideológicos do poder. Os domínios da comunicação e da política são insuficientes para explicar o fenômeno da cidadania midiática, é preciso conhecer seu contexto social e as motivações estruturais dos atores e instituições. Esta ampliação econômica e sociológica extrapola o âmbito discursivo da perspectiva do “duplo domínio”, permitindo abordar a questão de um ângulo mais abrangente e sociológico.
E a equivalência ideológica entre o consumidor e o cidadão, ou melhor, entre o mercado consumidor e a opinião pública é a grande intercessão entre os campos da política, da comunicação e da economia. Na cidadania midiática, todos são iguais perante o mercado, embora alguns tenham liberdade de consumir mais que os outros. Por um lado, a política vira um negócio: o candidato torna-se um produto; o voto, uma venda; a eleição, uma liquidação. Mas, por outro lado, a própria noção de cidadania se amplia em seus direitos básicos (educação, saúde, etc) e na capacidade de fazê-los valer, com o direito do consumidor. O consumo nos tornou cidadãos mais fortes!
A utopia democrática
Noberto Bobbio (2000) também considera que a Democracia faz parte de um mesmo processo histórico de secularização das tradições, que ela é meia-irmã da burocracia weberiana. Para ele, o pluralismo democrático dos grupos em relação ao Estado acabou com a democracia social entre os indivíduos.
Bobbio acredita que a democracia moderna nasceu de uma concepção individualista de sociedade, em que a vontade coletiva é produzida pela regra de maioria e acatada por todos formando uma unidade de ação “de forma centrípeta ou monocrática”, porém, na verdade, sempre vivemos em uma policracia, em que os grupos (e não os indivíduos) lutam para preservar seus interesses de forma centrifuga. Assim há uma flagrante contradição entre a representação do interesse público (da vontade da maioria formada por indivíduos) com a representação dos interesses privados coletivos em vários níveis: regionais, corporativos e pessoais.
Ele elabora um eufemismo interessante para analisar as Democracias Representativas atuais: suas “promessas não cumpridas”, isto é, aquilo que as democracias representativas gostariam de ser idealmente, mas que efetivamente não são. As “promessas não cumpridas” são: a democracia promete defender o interesse público (mas apenas negocia acordos dos interesses privados); a democracia promete acabar com os privilégios das elites, tratando todos os indivíduos de forma igual (mas há uma persistência das oligarquias e do tratamento desigual); a democracia promete ainda educar o povo para cidadania, transformando súditos em cidadãos, aumentando a participação ativa de todos sobre tudo (mas, o que se constata é a crescente apatia política dos jovens de melhor instrução e renda); a democracia promete, através da imprensa livre, acabar com o poder invisível (mas a transparência não venceu a privacidade dos acordos particulares); para citar apenas as promessas principais.
Mas apesar dessas críticas, em nenhum momento Bobbio desiste da democracia em si como sendo a melhor (ou, por baixo, “a menos pior” – como disse De Gaulle) forma de governo. Sua crítica visa antes levantar as deficiências institucionais da democracia para aperfeiçoa-la, através de uma passagem gradativa da democratização do Estado à democratização da sociedade e das instituições (da escola, da fábrica, dos bairros).
Giddens chama este processo histórico-institucional de “democratização da democracia”, miniaturizando ainda mais a noção de democracia, entendida agora não como uma 'forma de governo', mas como um método de relacionamento entre pais e filhos, entre grupos de amigos, entre marido e mulher (GIDDENS, 2003: p.61). A democracia como método não consiste simplesmente na regra de maioria (pois assim seria impossível existir democracia entre duas pessoas com interesses diferentes) ou o direito ao dissenso, mas sim na negociação dos interesses divergentes e das próprias regras de negociação.
A democracia vista desse modo não é o predomínio formal da maioria, mas a tomada de decisões através das regras negociadas entre os diferentes pontos de vista que formam uma unidade de ação.
Giddens não acredita na secularização absoluta das tradições e sim que a modernidade e a democracia (como um regime de regras negociadas) convivem com o poder simbólico de modo diferente. Para Giddens, não existe uma estrutura social fixa e permanente como pensava o estruturalismo e o funcionalismo, ela é processual e histórica. Não há uma única estrutura social, mas sim um processo de estruturação em que as relações sociais não são rígidas, mas sim dinâmicas e relativas no tempo e no espaço, práticas recursivas. ‘Reflexibilidade’ é a capacidade de retroalimentação realidade cultural e a vida social, ‘uma recursividade indireta’.
Para pensar o conceito de reflexividade, Giddens realiza um contraponto entre as sociedades tradicionais e as sociedades modernas. A vida social tradicional era voltada para o passado, para repetição de ciclos históricos; a modernidade e a democracia iniciam uma nova concepção de tempo-espaço em que a reflexividade é voltada para o presente e para o futuro: a sociedade de risco.
Segundo Giddens (2003, p.33), risco corresponde a “infortúnios ativamente avaliados em relação a possibilidades futuras”.
O risco é a dinâmica mobilizadora de uma sociedade propensa à mudança, que deseja determinar seu próprio futuro em vez de confia-lo à religião, a tradição ou aos caprichos da natureza. O capitalismo moderno difere de todas as formas anteriores de sistema econômico em suas atitudes em relação ao futuro. Os tipos de empreendimento de mercado anteriores eram irregulares ou parciais. As atividades dos mercadores e negociantes, por exemplo, nunca tiveram um efeito muito profundo na estrutura básica das civilizações tradicionais, que permaneceram amplamente agrícolas e rurais (GIDDENS, 2003, p.34)
Nesse sentido, a aceitação da existência do risco corresponde a uma forma calculista de ver o mundo, através da qual, simulam-se várias reações possíveis aos acontecimentos. Quanto mais a tecnologia interfere na vida social, quanto mais a objetividade científica torna-se senso comum, mais o homem reflete a existência do risco e adota psicologicamente o ‘princípio do acautelamento’, em que se sustenta a incerteza científica (a dúvida sistemática).
Apesar de a modernidade ser mais aberta ao conhecimento, ela também gera inseguranças pela pluralidade de opções que detém. Essa falta de certeza e de segurança, por sua vez, aumenta ainda mais a reflexibilidade da simulação de situações de risco. A democracia, assim vista, é 'a' utopia (o projeto futuro de uma sociedade perfeita sempre inacabada) por excelência. Os mitos estão sempre ancorados no passado imemorial, na tradição, na origem anterior à história; a utopia, ao contrário, está projetada no futuro, em um tempo que ainda não chegou no 'fim da história'. E, no presente, na reflexibilidade moderna, a democracia real é sempre imperfeita e imprevisível, arriscada e manipulada pelo poder simbólico.
A “reflexividade cultural exacerbada pelo risco” produz comportamentos individualistas. A única saída para democracia é se democratizar ainda mais, fazendo com que todos sejam responsáveis e tenham o máximo de autonomia individual. Ou seja: a globalização gera o individualismo e a necessidade de aprofundá-lo ainda mais, através de políticas públicas contra a dependência, seja química, social, familiar, emocional, econômica ou cultural.
E, em outro oposto, Giddens também acredita que “o mundo precisa de mais governo”, isto é, que o público governe mais o privado – considera inclusive que isso o define como sendo ‘de esquerda’. Na verdade, a Terceira Via leva apenas à exacerbação dos dois extremos Ideológicos clássicos em uma mesma proposta voltada para a globalização – o hiper-individualismo e o governo social em parceria com o terceiro setor; e não a superação prática e teórica da polaridade entre as perspectivas da direita e da esquerda, como promete.
Desta contradição nasce “o paradoxo da democracia”: quanto mais as pessoas se individualizam, menos participam das decisões coletivas. Giddens prova o paradoxo estatisticamente e suspeita que a mídia seja parcialmente responsável pelo problema, uma vez que ela frequentemente desqualifica os políticos e a política parlamentar.
E, assim, algumas perguntas cruciais permanecem sem resposta: Qual papel dos meios de comunicação no contexto da modernidade e da Democracia Representativa? Como é a relação entre a tradição (ou poder simbólico) e a democracia, entendida como método de decisões negociadas?
A democracia mediada.
Quem pretende responder essas perguntas é John B. Thompson (1995, 1998, 2002), que foi aluno de Giddens e tenta aprofundar alguns pontos de suas ideias, principalmente, sobre a relação cultural entre tradição e modernidade; e sobre o papel da mídia na democratização social da democracia representativa.
Em Ideologia e Cultura Moderna, Thompson retoma a questão da teoria liberal sobre a imprensa livre – o “quarto poder”, situando estruturalmente a mídia entre o Estado e o Mercado e postulando, por um lado, a separação do poder estatal e o princípio do pluralismo regulado dos meios de comunicação para que eles, e por outro lado, que eles não atendam aos interesses do mercado (1995: p. 337).
No último capítulo de Mídia e Modernidade (1998), Thompson aprofunda mais a questão, abordando-a agora de um ponto de vista mais normativo e menos analítico, com seu aperfeiçoamento da proposta de uma “Democracia Deliberativa” feita por Habermas e desenvolvida por Giddens. A proposta de democracia deliberativa aperfeiçoada por Thompson consiste em uma reforma institucional do atual modelo de democracia representativa, com o fortalecimento da mídia (e da Sociedade Civil politicamente organizada) em relação ao mercado e em relação ao Estado.
Outro aprofundamento do pensamento de Giddens por Thompson é a persistência discreta da tradição durante a modernidade, contrariando a ideia de que iluminismo foi uma ruptura radical. Para demonstrar seu ponto de vista, Thompson faz uma distinção operacional em quatro aspectos da tradição: hermenêutico, normativo do cotidiano, legitimador do poder e identificador cultural.
No aspecto normativo, a tradição é um sistema de normas que orienta a Ação Social segundo o passado. De forma que as rotinas reproduzem a memória e a memória produz as rotinas cotidianas. No aspecto legitimador, a tradição é também ideologia que autoriza o exercício do poder. Thompson, nesse ponto, segue Weber, que crê no declínio da legitimidade tradicional e o predomínio da legitimidade legal (através de leis e regras) e da nova legitimidade carismática (através da personalidade e do magnetismo pessoal) gerada pela mídia. No aspecto hermenêutico, a tradição é uma estrutura de interpretação. Assim, pode-se dizer que a ciência é uma tradição de interpretar os acontecimentos como fatos objetivos. E no aspecto de identificador, a tradição é ainda um fator de auto formação cultural de identidade coletiva e individual, do ‘Self’ de um determinado grupo ou população. E a identidade de pertencimento territorial, profissional e/ou religioso.
Segundo Thompson, a Globalização acabou com os aspectos Normativo e Legitimador das tradições, mas os aspectos Hermenêutico e Identificador Cultural permanecem vivos na cultura moderna. (THOMPSON: 1998; p. 165) O poder simbólico tradicional não normatiza mais o cotidiano nem legitima autoridades impostas pela força, mas continua vivo como sistema de interpretação e formação cultural. Thompson dá destaque, principalmente, à mudança do aspecto identificador e ao fato de que a nova experiência do Eu (Self) em um mundo mediado aponta para uma nova ancoragem das tradições e para a cidadania global. A comunicação mediada globalizada torna o processo de auto formação dos indivíduos muito mais aberto e reflexivo que na relação face a face. Por outro lado, ela não somente enriquece e transforma o processo de formação do Self, mas também troca da experiência vivida pela experiência mediada, gerando uma situação antes inexistente, um novo tipo de relação carismática, a “intimidade não recíproca à distância” ou Imagem Pública.
Imagens e escândalos
‘Imagem Pública’ (ou imagem de marca) é o conceito utilizado para definir uma representação social comum aos seus agentes e à sua audiência. Diferencia-se tanto da ‘imagem semiótica’ (uma foto, por exemplo) quanto da ‘imagem cognitiva’ (a imaginação simbólica), embora guarde uma proximidade estreita com ambas.
A Imagem Pública tem um lado conceitual, proposto pelos agentes; um lado simbólico em sua recepção; e um lado codificado em uma linguagem. Aliás, ela é resultante de uma tripla representação: a representação do ator, a representação do diretor (e da linguagem) e a representação do público.
No livro A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia (1998), John Thompson para definir Imagem Pública ou ‘intimidade à distância não recíproca’ dá um exemplo curioso: uma senhora que tem fantasias sexuais com um astro do cinema enquanto faz amor com seu marido. Ela se sente culpada, mas depois, entra um fã clube, onde encontra mulheres com imaginações semelhantes. Para o autor, trata-se de uma curiosidade (se apaixonar unilateralmente por um desconhecido), mas, para nós, o curioso é que esse tipo de relação imaginária (hoje em dia muito comum, para não dizer ‘normal’) não existia há cento e cinquenta anos. Há cento e cinquenta anos também era bastante raro que individuo conhecesse cerca de cem pessoas. As pessoas viviam suas vidas isoladas, conhecendo outras pessoas apenas presencialmente.
Em outro livro, O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia (2002), Thompson advoga a tese de que as Imagens Públicas transitam sempre entre o público e o privado. Apesar de classificar os tipos de escândalos pela transgressão-gatilho (de abuso de poder, sexuais, financeiros), Thompson chama a atenção para o fato de que o que realmente alimenta em longo prazo o escândalo midiático não é a gravidade da transgressão principal que o gerou, mas sim “transgressões de segunda ordem”: mentiras, desmentidos, ocultamentos. O que fomenta os escândalos durante mais tempo é a tentativa dos agentes de manter invisível algo que se tornou público.
O escândalo é esse ‘desmascaramento’ dos agentes e de sua confiabilidade. Enquanto se diz algo publicamente; dos fundos de sua vida privada emergem fatos, pessoas, situações, que contradizem o que está sendo dito. A verdade aparece nas costas dos agentes, desmentindo-os por de trás, no fundo que os enquadra. O efeito das transgressões secundárias – as discrepâncias entre significado e significante da imagem – tanto pode reforçar (por complementariedade entre figura e fundo) ou destruir (por contradição entre o dito e o visto).
Nesse contexto, os escândalos têm se tornado um elemento central na forma de se fazer política nas democracias modernas. É claro que sempre existiram escândalos; mas, na contemporaneidade, eles se tornaram constantes e até mesmo periódicos e obrigatórios. Mais do que eventos esporádicos e excepcionais, os escândalos se tornaram uma constante da prática política em muitos países democráticos em que a mídia goza de liberdade investigativa, a ponto de vários autores falarem da “cultura do escândalo” ou da “política de escândalos” permanentes. [3]
O surgimento das imagens públicas passou a ter mais relevância do ponto de vista artístico, desportivo e político do que do ponto de vista religioso, embora o comportamento do fã da cultura de massas seja essencialmente o mesmo do fanático religioso em um ambiente mediado.
Uma das características marcantes do regime de visibilidade da mídia é a necessidade constante de produção de conteúdo. ‘Ficar e se manter em evidência’. E os escândalos além de desmascarar a imagem dos poderosos, também criam e ampliam Imagens Públicas. Modelos e atrizes que tem fotos comprometedoras roubadas por hackers, bandidos que conquistam celebridade pelos seus crimes, atletas desleais, injustiças, etc. Por mais tristes, desagradáveis ou cruéis sejam os acontecimentos, eles celebram seus personagens; por mais reprováveis sejam as ações e que desabonem política e moralmente seus agentes, elas ainda assim os popularizam. [4]
Gomes (2006) estudou a Imagem Pública de Luís Inácio Lula da Silva nas eleições de 1989, 2004, 2008 e 2002. O trabalho ressalta que as três primeiras derrotas foram fundamentais para o candidato alcançar visibilidade nacional e, modificando sua Imagem através de técnicas de marketing, ganhar a quarta eleição. [5]
Metodologia tríplice
Thompson, no entanto, não considera a experiência mediada como sendo uma interação (pois não tem reciprocidade) e estuda a Imagem Pública apenas na ótica da comunicação de massas. Para isso, ele prescreve uma metodologia hermenêutica não como uma alternativa aos outros métodos de análise já existentes, mas sim como um referencial metodológico geral, dentro do qual alguns desses métodos e técnicas específicas podem ser correlacionados entre si.
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Emissor |
Mensagem |
Receptor |
OBJETO |
Análise sócio-histórica da produção e transmissão |
Análise Formal ou Discursiva |
Análise sócio-histórica da apropriação |
METODOS |
Situações espaço-temporais Campos de interação Instituições Sociais Estrutura Social Meios técnicos de transmissão |
Análise semiótica Análise de conversação Análise sintática Análise narrativa Análise argumentativa |
Interpretação das Mensagens Mapa das diferentes interpretações Re-interpretação da interpretação |
RESULTADO |
Síntese Hermenêutica |
Por entender que os processos de compreensão e de interpretação devem ser vistos não como uma dimensão metodológica que exclua radicalmente uma análise formal ou objetiva, mas antes como uma dimensão que está no início e no final do conhecimento ao mesmo tempo, Thompson: a) parte da compreensão imediata que se tem de uma determinada forma simbólica na vida cotidiana, b) analisa objetivamente esta interpretação preliminar (consorciando vários métodos), e c) reinterpreta o significado da forma simbólica. A esta metodologia geral de interpretação dos discursos dos meios de comunicação, chama-se “enfoque tríplice”. (THOMPSON, 1995: 355)
Inicialmente (1995, 366), o objetivo da análise sócio histórica é reconstruir as condições sociais e históricas de produção, circulação e difusão das formas simbólicas. As maneiras como essas condições influenciam podem variar de acordo com a situação e o objeto pesquisado. Thompson propõe alguns níveis de análise: as situações de tempo/espaço em que as formas simbólicas são produzidas; os campos de interação (face a face, interação mediada); as instituições sociais; a estrutura social (as classes sociais, as relações entre gêneros e outros fatores sociais permanentes) e os meios técnicos de transmissão de mensagens (a fixação material e a reprodução técnica dos sinais). Em um segundo momento (1995: 369), toma-se a forma simbólica como um texto, isto é, uma estrutura narrativa relativamente autônoma de sua produção e de seu consumo. Neste sentido, a análise simbólica implica em uma abstração metodológica das condições sociais e históricas de produção e recepção das formas simbólicas. Thompson adota vários métodos de análise discursiva: semiótica, sintática, narrativa, argumentativa, etc.
Finalmente (1995: 375), na última fase de sua hermenêutica, Thompson leva em conta a interpretação criativa do significado das formas simbólicas em diferentes contextos de recepção, inclusive no próprio contexto do analista/enunciador da interpretação. A análise dos diferentes contextos de recepção demonstra que por mais rigorosos que sejam os métodos e técnicas, eles não podem abolir a liberdade de interpretação dos públicos e das situações em que se encontram inseridos.
Aliás, temos, dentro da proposta do enfoque tríplice, uma síntese entre três tipos de estudos distintos da área de comunicação:
a) A sociologia dos meios de comunicação (os estudos centrados no contexto de transmissão – seja na versão crítica que denuncia a indústria cultural ou na funcionalista que enaltece a comunicação de massa);
b) a semiótica (e os vários tipos de estudos em torno da linguagem verbal e visual, retórica, filosofia analítica, analise discursiva e a própria hermenêutica);
c) e, finalmente, os diferentes tipos de estudos de recepção (pesquisas de opinião quantitativas e qualitativas, pesquisas de agendamento e de análise bibliográfica especializada).
Thompson considera que em estudos midiáticos, ao contrário da hermenêutica literária tradicional, a “autonomia semântica das mensagens” é secundária diante dos contextos históricos de transmissão e recepção. E com essa ênfase sociológica nos contextos históricos dos interlocutores, Thompson não está apenas ampliando o alcance discursivo da hermenêutica, mas também adaptando a teoria da interpretação para a comunicação de massas.
Com as redes sociais e digitais, no entanto, deixou-se de ter um único contexto de transmissão e vários contextos de recepção para se tornar um conjunto de múltiplos contextos mistos de transmissão/recepção dentro de um único contexto virtual em regime de simultaneidade de tempo.
Hoje, estamos vivendo a desfragmentação da cultura de massas, promovida pela segmentação e pela interatividade das Redes Digitais, e as questões em torno da noção de Imagem Pública se tornaram ainda mais complexas, se multiplicando e dividindo de diferentes modos, democratizando e pulverizando a visibilidade em universos culturais variados e simultâneos.
Com a segmentação, houve uma pulverização dos fluxos sociais e o surgimento de ‘micro imagens públicas’: celebridades setoriais, tribais, transnacionais e até celebridades locais virtuais. Houve uma democratização relativa da visibilidade. A Imagem Pública pessoal das redes pode ser vista como uma miniatura da Imagem Pública de massas. Há inclusive vários tipos de sobreposição entre as duas: escândalos das grandes Imagens Públicas através das redes digitais, celebridades virtuais que chegam à grande mídia, etc.
Com a interatividade, a intimidade à distância deixou de ser ‘não-reciproca’, aumentou o retorno da audiência na construção da Imagem Pública e no comportamento dos agentes. A visibilidade tornou-se uma relação pessoal de micro poder. Em tempos de hipervisibilidade das redes, todos tem uma Imagem Pública, quer queiram ou não, para zelar como patrimônio pessoal.
A popularidade, o carisma e o personalismo sempre existiram; porém no regime de hipervisibilidade promovido pelas mídias esses elementos assumem um caráter decisivo na vida social. A noção de Imagem Pública reúne, sintetiza e globaliza várias categorias analógicas (reputação, prestigio, honra, status quo, etc.) que antes existiam de forma fragmentada em diferentes graus, variando segundo a cultura de cada sociedade. E com as redes digitais, essas imagens técnicas pessoais se miniaturizaram e se multiplicaram em escala infinitesimal.
Inteligência coletiva
Para executar uma sinfonia musical com precisão e sensibilidade, uma orquestra precisa que seus integrantes desenvolvam certas habilidades psicológicas e competências subjetivas (além da excelência das qualidades técnicas e artísticas), tais como: afinidade emocional, capacidade de sincronia intuitiva, criatividade coletiva, improviso em conjunto, tolerância com erros secundários e gentileza nas correções necessárias. Essas mesmas habilidades também são necessárias para a produção colaborativa em rede de, por exemplo, narrativas audiovisuais, que envolvem vários tipos de artistas e técnicos. Atualmente, cada vez mais ‘grupos’ estão se tornando ‘equipes’ nas mais diversas atividades profissionais, principalmente na área da educação. A diferença entre o ‘grupo’ e a ‘equipe’ é que a última ultrapassa a soma das habilidades de seus integrantes através da inteligência coletiva, da capacidade de interagir criativamente em conjunto. Imagine várias equipes espalhadas no espaço que passam a se coordenar umas em relação às outras de forma descentralizada, sincrônica e horizontal – sem uma hierarquia vertical que as centralize. Cada equipe local seria, então, um integrante de uma equipe nacional ou internacional. O resultado desta interação participativa entre cada um e o conjunto é a ‘Inteligência Coletiva’.
Para Pierre Levy (2007), principal elaborador do conceito, a inteligência coletiva é um conceito que descreve um tipo de inteligência compartilhada que surge da colaboração de muitos indivíduos em suas diversidades. É uma inteligência distribuída por toda parte. A internet é uma forma de inteligência coletiva, resultante de um processo social de inteligência coletiva, que, por sua vez, abriga vários outros projetos de inteligência coletiva dentro de si (como o movimento de softwares livres). Na verdade, a internet não é a ‘causa’ das mudanças sociais de comportamento, ela é o produto e a ferramenta da inteligência coletiva para sua ampliação exponencial e a configuração de uma inteligência global.
Segundo Levy, a oralidade anterior à escrita é baseada no modelo de interação presencial 'um-um'; a comunicação através da escrita e dos meios de comunicação de massa corresponde à interação 'um-muitos' (um contexto de emissão e vários recepção); e a inteligência coletiva é resultante de uma novo modelo de interação social: a relação 'muitos-muitos'. Levy acredita que a internet e as novas formas de interatividade nos levarão de volta à Democracia Participativa e ao voto direto: a tecnodemocracia ou ecologia cognitiva. Segundo Levy, ecologia e solidariedade passam mais por um redimensionamento das desigualdades cognitivas que de uma redistribuição material das riquezas ou de uma reorganização política das relações de força.
A principal diferença entre as propostas de Thompson e Levy é a questão da legitimidade dos mecanismos de representação do poder na cultura atual. Thompson acredita na racionalização dos interesses sociais através de uma mídia democrática; Levy deseja, a partir do controle social através da informação, reorganizar as relações sociais em uma nova organização do tempo social e um novo regime visual de simultaneidade: a inteligência coletiva.
Para Thompson, no entanto, a comunicação mediada é uma 'quase-interação'. Ele não desconhece a ideia de que a Internet permite uma interação múltipla face-a-face, mas não vê este modelo como um paradigma cultural estruturante das relações sociais nas sociedades em rede e considera o retorno à democracia direta participativa uma ilusão 'plesbicitária' e não uma ameaça real à Democracia Representativa.
SOCIABILIDADE |
ORGANIZAÇÃO DA CONSCIÊNCIA |
Anomia (Caos social) |
Consciência Coletiva < Consciência Individual |
Solidariedade Mecânica |
Consciência Coletiva > Consciência Individual |
Solidariedade Orgânica |
Consciência Coletiva = Consciência Individual |
Inteligência Coletiva |
Consciência Coletiva + Consciência Individual |
Para Durkheim, nas sociedades primitivas a consciência coletiva predominava sobre a individual e a solidariedade entre seus integrantes é mecânica.
Imagine-se, por exemplo, em um jogo de futebol em que todos os jogadores de cada time atacam e defendem em bando sem nenhuma preocupação tática com as posições. Há uma completa desorganização, em que cada um tenta sozinho, através de sua técnica pessoal, ganhar o jogo. Teríamos aqui uma situação de anomia ou caos.
No entanto, se o esquema tático do time tolher as habilidades pessoais, com cada jogador preso a uma posição e com jogadas sempre previsíveis baseadas no desempenho físico, estaríamos em uma situação de solidariedade mecânica.
Nesta lógica, a solidariedade orgânica será aquela em que as duas formas de consciência – a individual e a coletiva – se mantiverem equilibradas, ou seja, que cada jogador dessa partida imaginária tiver uma visão de conjunto e alguma liberdade tática de movimento. A noção de Inteligência Coletiva representa um nível de organização mais aperfeiçoado do que a solidariedade orgânica porque ao invés de um equilíbrio entre formas de consciência concorrentes entre o todo e as partes, ela representa a interação em uma única consciência que, além de ser coletiva e individual simultaneamente, é também espontânea e intuitiva.
Em relação ao nosso jogo de futebol, é quando o futebol deixa de ser técnico e tático, para ser artístico; quando sem nenhum planejamento anterior, armam-se tabelas de passes imprevisíveis e as jogadas acontecem como “se fossem por mágica”. E essa sinergia, descentralizada e sincrônica, é a inteligência coletiva.
Segundo o professor Henry Jenkins (2008), a inteligência coletiva não é meramente uma redistribuição quantitativa das informações de todas as culturas. Ela deve ser sobretudo qualitativa, no sentido de inventar e formar novas competências para própria rede. A Internet não é a ‘causa’ das mudanças sociais de comportamento, ela é o produto e a ferramenta da inteligência coletiva para sua ampliação exponencial e a configuração de uma inteligência global.
Vários autores utilizam o termo ‘inteligência coletiva’ para designar fenômenos específicos diferentes[6]. Outros pensadores generalizam bastante o conceito, retirando-o do contexto contemporâneo[7].
Segundo Jenkins, a Inteligência Coletiva, como advento histórico das sociedades mediadas, interdepende de dois outros acontecimentos importantes: a cultura participativa (a segmentação interativa da mídia) e a convergência corporativa e tecnológica da mídia em escala planetária. A cultura participativa se refere ao fato da audiência midiática ter se tornado integrante ativa do processo comunicacional e a inteligência coletiva à nova sinergia social resultante (a transmediação) da convergência midiática e da cultura participativa.
Por um lado, com a desmassificação da comunicação, as pessoas querem cada vez mais interferir, opinar, participar; por outro, há também uma concentração de recursos tecnológicos e financeiros convergindo no sentido de produzir uma sociabilidade grupal mais inteligente. Para Jenkins, a inteligência coletiva é definida por esses dois parâmetros.
As redes sociais são formadas por unidades autônomas interligadas em arranjos temporários (unidades globais e locais ao mesmo tempo, dotados de inteligência coletiva, isto é, da capacidade de agir simultaneamente em conjunto sem hierarquia vertical). E essa sinergia entre os grupos e pessoas, descentralizada e sincrônica, é a inteligência coletiva.
Movimentos sociais e Redes Digitais
Diferencie-se aqui a noção de ‘Rede Social’, referente à ação comum, sincrônica e descentralizada de agentes semelhantes não presenciais durante algum tempo (rede de apoio ao Tibete e ao Dalai Lama – por exemplo); da noção de ‘Redes Digital’, que correspondem às redes intercomunicação dentro e fora da internet (incluindo os sites de serviço de compartilhamento de arquivos e mensagens, como o Facebook). As Redes Sociais, assim, são anteriores, em todos os sentidos, às Redes Digitais.
Muitas vezes, no entanto, essas definições se confundem. Pois, se o acontecimento é realizado por uma Rede Social, a representação do acontecimento pela Rede Digital é quem o torna visível; e se foram as necessidades sociais de comunicação dos grupos que geraram as Redes Digitais, essas estão potencializando a organização da toda sociedade em Redes Sociais.
Recentemente, o sociólogo Manuel Castells (2013) estudou vários movimentos sociais organizados através da internet a partir de 2010 (Tunísia, Islândia, a revolução egípcia, os indignados da Espanha, o Occupy Wall Street em Nova York e os protestos de junho de 2013 no Brasil) e identificou vários aspectos em comum - o caráter espontâneo, pluralista, apartidário e heterogêneo das manifestações - formando ‘um padrão rizomático emergente’, uma ‘cultura da autonomia’. Os movimentos descritos por Castells foram populares, dirigidos por si mesmos, organizados autonomamente pela internet por ativistas sem militância, sem direção única ou coordenação centralizada, sem o controle de organizações políticas ou entidades civis, nem o apoio dos meios de comunicação tradicionais. Foram movimentos pluralistas e heterogêneos, com motivações, bandeiras e palavras de ordem as mais variadas e até contraditórias. O sentido mais geral das manifestações coloca em xeque a própria estrutura do sistema de representação política. Algumas foram contra o que o parlamento e os partidos representam, mas sem intenção de substituí-los ou extingui-los.
Castells se tornou internacionalmente conhecido devido sua trilogia A Sociedade em Rede (1999), em que analisa as mudanças contemporâneas em um tripé: a nova economia-política (as relações sociais de produção se desindustrializam e passam a se organizar em redes de unidades autônomas); nova relação de tempo-espaço em função da linguagem da mídia; e as novas 'relações de experiência' nas vidas pessoais, no cotidiano.
No primeiro livro da trilogia, Castells faz uma homenagem a McLuhan como pioneiro no entendimento das mudanças de percepção instituídas pela televisão (e multiplicadas pelo computador), mas também o relativiza, uma vez que ele leva em conta apenas um terço dos fatores estruturais que estão modificando a sociedade, sendo preciso ainda avaliar as transformações existentes no mundo do trabalho e das relações de gênero.
Quinze anos depois (e não por acaso os quinze anos em que a internet se desenvolveu e se estabeleceu) pode-se dizer o modelo de organização em rede foi do mercado corporativo à sociedade civil organizada, chegando agora à esfera pública da política. Redes de indignação e esperança (2013) é um livro que aponta para falência da organização política tradicional dos partidos e dos parlamentos atuais.
E, principalmente, esbouça uma nova concepção de liberdade e de igualdade, própria da democracia inerente a esses novos movimentos sociais em rede.
Conclusão
Que lições se pode tirar da leitura desses autores? Será que a sociedade em rede colocará fim à democracia mediada? Ou a tornará mais interativa? E o mais importante: o que aprendemos com a democracia das Redes Sociais?
Somos iguais por dentro e diferentes por fora? Os homens são objetivamente diferentes uns dos outros, mas todos são subjetivamente semelhantes. Ou seria o contrário: os homens são iguais (ou biologicamente equivalentes) enquanto seres e variados do ponto de vista psicológico. Não importa. Em ambos os casos, somos todos especiais. Não apenas iguais ou diferentes. Somos semelhantes e diferenciados - tanto cultural como geneticamente.
E uma segunda conclusão derivada desta primeira é que precisamos criar um mínimo de regras que garantam liberdade e igualdade, a todos e a cada um, segundo seu esforço e capacidade, tanto do ponto de vista quantitativo como no aspecto qualitativo. Não basta que se garantam direitos “iguais” a todos, é preciso também tratar todos como “pessoas especiais”. O ‘Paradoxo da Democracia’ de Giddens (segundo o qual quanto mais se individualizam, menos as pessoas participam); exclui a solidariedade fraterna e a cooperação livre entre iguais como fundamento da sociabilidade. Pois é não é apenas na diversidade e na autonomia das relações entre os grupos sociais e os indivíduos que repousa hoje a possibilidade de uma democracia cada vez mais múltipla, complexa e produtora de singularidades. É, sobretudo, na compreensão e na reciprocidade que podemos construir a nova sociabilidade democrática das redes.
Bibliografia
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_____ Direita e Esquerda. São Paulo: UNESP, 2001.
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________Redes de indignação e esperança – Movimentos sociais na era da internet. Tradução Carlos Alberto Medeiros. São Paulo: Zahar, 2013.
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GOMES, Marcelo Bolshaw. Decifra-me ou te devorarei – A imagem pública de Lula no horário eleitoral em 1989, 1994, 1998 e 2002. Tese de doutorado em Ciências Sociais (2006). Natal, EDFURN: 2006.
JENKINS, Henry. A cultura da convergência. Tradução Suzana Alexandria. São Paulo, Aleph: 2009.
LEVY, P. Tecnologias da Inteligência – o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
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SILVEIRA, Flavio E. A Decisão do Voto no Brasil. 1998 (Tese de doutorado em Ciência Política). UFRGS, Porto Alegre.
THOMPSON, John B. Ideologia e Cultura Moderna – teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis: Vozes, 1995.
______ A mídia e a modernidade – uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.
_______ O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Trad. de Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002.
WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2004.
_______ Metodologia das Ciências Sociais. São Paulo: Cortez/Unicamp, 1992.
[1] Este texto é uma contribuição de Marcelo Bolshaw Gomes, Professor de Sociologia da Comunicação no Departamento de Comunicação Social (DECOM) e de Estudos Narrativos no Programa de Pós Graduação em Estudos da Mídia (PPGEM) da UFRN. Doutor em Ciências Sociais <lattes.cnpq.br/4277715352803619>.
[2] Anthony Giddens é sociólogo, diretor da London School of Economics e professor da Universidade de Cambridge. Também é professor visitante de instituições importantes, como as universidades de Harvard, Standford, Roma, Sorbonne. O pensador tem 31 livros, publicados em 22 países.
[3] SILVA (2013) apresenta um panorama da pesquisa sobre escândalo político no Brasil e no exterior entre os anos de 1998 e 2008. No levantamento junto a bases internacionais, revistas e congressos nacionais de área, a pesquisadora identifica o crescente interesse que o tema desperta entre pesquisadores, especialmente da área da comunicação.
[4] A Imagem Pública pode inclusive ser reforçada pela sua própria sombra. Os ‘defeitos’, erros ou quaisquer pontos negativos de alguém podem ser interpretados de modo favorável, dando ainda mais confiabilidade ao agente da Imagem Pública. Assim, o ‘despreparado’ se torna ‘humilde em sua ignorância’; o ‘arrogante’ vira ‘verdadeiro’; e o ‘autoritário’ é vendido como alguém que chama para si toda responsabilidade, solitariamente, ‘isolado e incompreendido’.
[5] Aliás, a Imagem Pública de Lula mereceria um estudo aparte no que diz respeito à habilidade do agente, tanto em reverter propaganda negativa dos inimigos eleitorais, quanto a se manter ‘blindada’ em função dos escândalos, como o do ‘mensalão’, durante seus dois mandatos. Talvez porque a Imagem Pública da Lula, vista como uma mediação de intimidade não recíproca à distância, seja um pouco mais íntima e um pouco menos não recíproca do que a maioria, dialogando publicamente com seus aspectos negativos, falando com diferentes públicos segundo seus modos particulares.
[6] Tais como a colaboração involuntária através de dados em site LinkedIn, uma rede de integração profissional que sugere parcerias e negócios; ou o PageRank do Google, um algoritmo que atribui popularidade a links (endereços eletrônicos) segundo seu acesso diário, citação por outros links e outros critérios.
[7] Howard Bloom (1995), por exemplo, tem discutido a possibilidade de inteligência coletiva do nível da física quântica (comportamento coletivo das partículas subatômicas) ao nível da evolução biológica das espécies (comportamento coletivo das bactérias, plantas, animais e sociedades humanas).
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