A realidade social e a linguagem no romance Vidas Secas
por Maria Suely Ferreira
acadêmica de Serviço Social da UFAM
postado em mai. 2016
Nas décadas de 1930 e 40, o Brasil e o mundo viveram profundas crises, e nesse contexto os romancistas brasileiros começaram a analisar de maneira crítica e denunciativa os problemas sociais.
Nesse período destaca-se o Modernismo que, em sua segunda fase, fortaleceu ainda mais as ideias divulgadas pela primeira fase modernista. Os textos da segunda fase caracterizam-se principalmente pelo regionalismo e pela relação do homem com o meio social em que vive. Com base nas conquistas da primeira fase, os autores da segunda resolveram dar um novo tom a esse regionalismo, evidenciando ainda mais a realidade e os problemas sociais da época. Dutra (2015) afirma:
Os romances desta geração eram voltados principalmente para as causas sociais, exercendo um papel de denúncia e crítica social. Nessa época, a região da seca nordestina estava muito visada e, por isso, tornou-se um tema bastante corriqueiro nas obras. Por conta desse papel social, alguns especialistas consideram essa fase como “neorrealista”, já que resgata ideais consagrados pelos romances de Machado de Assis, como, por exemplo, o condicionamento do caráter humano pelo meio em que ele vive.
Graciliano Ramos, romancista da segunda fase, escreveu seu nome na história por meio de seu romance “Vidas Secas”, publicado em 1938, que contribui de forma significativa para esse período, através de denúncias dos problemas e injustiças sociais da realidade vivenciada, assim como muitos autores da época. Para Maria Helena Patto, Graciliano:
[...] conheceu por dentro a barbárie das relações sociais e “metamorfoseou em literatura” a experiência da injustiça e a revolta contra ela. Publicado em 1938, Vidas secas faz parte do projeto literário da “geração de 30”, de se valer da arte para mostrar uma sociedade vincada de espoliação e opressão. Valendo-se da linguagem oral e regional, Graciliano fala da decepção política que sobreveio nas décadas de 1930-1940 e não vê “conaturalidade entre o homem e o meio”, mas, em cada personagem, “a face angulosa da opressão e da dor” (2012, p. 225).
Vidas Secas traz o leitor para dentro da história, uma história de contradições reais de uma vida que não vive: “nem vida, nem morte, vidas secas” (PACHECO, 2014, p. 35). O interesse de Graciliano é pelo homem, o homem da seca nordestina e suas intempéries, o homem sertanejo que aparece agora retratado na literatura. “Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e a injustiça humana” (apud REIS, 2012, p. 205, nota 1).
As obras de Graciliano denotam as experiências vivenciadas por ele, que parecem transferidas para seus romances. De acordo com Dutra (2015) “Em suas obras, o pessimismo e a falta de caráter dos personagens refletem um autor que desacredita nas boas intenções dos indivíduos”.
Além da indignação com as questões sociais e opressões sofridas pelos retirantes, acredita-se que a relação familiar com os pais e a família também influenciou o pensamento do autor ao escrever os contos que formaram o romance Vidas Secas. Nogueira Junior (2013) embasa que:
Graciliano Ramos, nascido em 1892 (...) viveu sob o regime das secas e das surras que lhe eram aplicadas por seu pai, o que o fez alimentar, desde cedo, a idéia de que todas as relações humanas são regidas pela violência. Em seu livro autobiográfico "Infância", assim se referia a seus pais: "Um homem sério, de testa larga (...), dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza (...), olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura".
(In: PATTO, 2012, p. 229)
Na obra em questão o cenário é a caatinga nordestina desolada pela seca. É um romance cíclico, pois começa a partida de uma família de retirantes nordestinos fugindo da seca e nela termina, respectivamente, no primeiro e no último capítulo da obra: Mudança e Fuga.
Numa planície comida pelo sol, os juazeiros verdes. Em seguida, a família, cansada e faminta; os pertences cabem num baú de folha, que vai na cabeça, além de um aió, uma cuia e uma espingarda sem munição. Buscam sombra, mas os juazeiros se comportam à maneira de uma miragem [...]A descrição termina com “o voo negro dos urubus” fazendo círculos em redor de animais moribundos. A sobreposição de paisagem, homens, bichos é ressaltada pela montagem que intercala a descrição do quadro à das pessoas, e destas à dos moribundos e necrófagos, dando a ver a violência generalizada num mundo apenas aparentemente inabitado por outros homens, que deixaram estes à própria sorte (PACHECO, 2014, p. 35).
A obra que possui 13 capítulos contempla a trajetória de uma família de retirantes que necessita migrar de tempos em tempos para fugir da seca, em busca de melhores condições de vida. “A partir de uma situação de carência extrema, o romance movimenta uma família sertaneja, tangida pela seca – Fabiano, sinha Vitória, o menino mais novo, o menino mais velho e a cachorra Baleia” (REIS, 2012, p. 192). No romance, as personagens, devido a vida sofrida, a opressão e as injustiças sociais tornam-se rudes e ignorantes. “O destino é incerto, mas a vontade de viver impõe a caminhada contra a morte, que espreita a cada passo. A esperança renasce da nuvem que surge acima do monte e anuncia o fim da estiagem, mas a promessa de renascimento de plantas, animais e homens é tênue” (PATTO, 2012, p. 224-225).
Fabiano é bruto e duro como a terra seca do sertão e sua linguagem acompanha isso, ele está sempre dividido entre a revolta e a passividade, sendo que predomina a segunda devido à linguagem escassa que possui.
Sinhá Vitória tem espírito inconformado, sonha em ter uma cama de couro como a de um antigo patrão, pois dorme em uma cama de varas, é uma pessoa queixosa e amargurada pela falta de perspectiva para a família, mas é a única da família que consegue pensar com clareza.
Os filhos não possuem nomes, são chamados de Menino Mais Novo e Menino Mais Velho, se tornam a representação do anonimato dos meninos nordestinos; o mais novo sonha em ser vaqueiro como o pai para impressiona-lo; o mais velho deseja aprender as palavras, tinha um vocabulário tão minguado que era comparado a um papagaio morto, valia-se de exclamações e gestos.
E, finalmente, a personagem Baleia, a cadela de estimação: considerada como um membro da família é a personagem mais humanizada, por sempre ter disponibilidade de ajudar e dar carinho a todos.
No decorrer da análise, Graciliano Ramos demonstra indignação ao evidenciar as dificuldades sofridas pelos sertanejos. A narrativa denuncia as condições de miséria e o desamparo social, retrata a seca do sertão nordestino, as dificuldades sociais e comunicativas, as injustiças, os sonhos, as esperanças e pequenas alegrias.
Como crítica social, a obra trabalha as raízes da opressão no Brasil, principalmente no campo brasileiro, para isso cria personagens opressoras e oprimidas. Através das personagens mostra as dificuldades, tanto sociais como discursivas, de forma que explora em conjunto a dimensão individual e social de cada uma, com o objetivo de problematizar as questões sociais em um tom crítico e denunciativo. A fome, a falta de moradia, a opressão do patrão e do Governo são elementos que atingem Fabiano e sua família que são desamparados no campo social e até mesmo no campo discursivo, pela deficiência de comunicação entre as personagens integrantes da família.
No romance nota-se que a linguagem verbal não é parte predominante do cotidiano das personagens, como consequência é utilizada como arma de opressão pelas outras personagens da trama sobre a família de Fabiano, colocando-os na condição de seres oprimidos e marginalizados. Nota-se o pensamento inferiorizado e confuso do protagonista da obra no capítulo 11 - O soldado amarelo:
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos da polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins. Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
- Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo. (RAMOS, 2002, p. 107)
A linguagem adotada por Graciliano é fundamental para entender a obra. É uma linguagem sucinta e sem sentimentalismo, adequada à seca, um estilo seco que diz muito com poucas palavras; as falas das personagens são reduzidas, mas no decorrer do romance aparecem alguns diálogos, a maioria sem conexão, ou seja, sofrem também com a carência na articulação verbal, consequência das adversidades naturais e sociais.
A ausência do entendimento do discurso é notória nas relações entre as personagens e suas ações, onde a comunicação pode ser comparada no mesmo nível dos animais. Graciliano trabalha a pobreza da fala das personagens também como crítica a opressão sofrida pelos sertanejos, é tão grande que lhes tira até mesmo o direito de falar.
Observa-se que a realidade vivida por Fabiano e sua família não retrata somente as dificuldades diante da seca, mostra também o desamparo social das famílias do Nordeste, as injustiças sofridas pelas camadas menos favorecidas e oprimida pela miséria e o descaso político. Segundo Rosa (2002, apud Victor Coelho, 2008), “além do desamparo social (acesso a moradia, saúde, educação, segurança) está o desamparo discursivo (formação de valores e ideais), fato que dificulta o sujeito de posicionar-se e ter voz nas relações de poder e contribui mais ainda para o processo de exclusão social”.
No decorrer da trama as personagens secundárias contribuem para a ideia de opressão e desigualdade constantes no livro. A família é vítima da seca, mas seus problemas também estão no meio social onde vivem. O patrão de Fabiano representa a repressão política, pois se aproveita da ignorância do vaqueiro para subtrair o lucro do funcionário; já o soldado amarelo assume o papel da repressão das instituições, age de maneira oportunista e corrupta quando se aproveita da patente, bate e prende Fabiano de forma injusta e desonesta. Nota-se essa afirmativa no capítulo 3 – Cadeia:
Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. (...)
– Vossemecê não tem direito de provocar os que estão quietos.
– Desafasta bradou a polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem se despedir.
–Lorota gaguejou o matuto. Eu não tenho culpa de vossemecê esbagaçar os seus possuídos no jogo?
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpergata do vaqueiro.
- Isso não se faz moço, protestou Fabiano. (...)
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientizou-se e xingou a mãe dele. Aí amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá. Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu. (RAMOS, 2002, p. 29 e 30).
Em Vidas Secas, os meios de opressão não eram apenas das condições naturais. Fabiano é considerado sem terra, comparado a um nômade, mas suas andanças não se devem apenas à seca. O protagonista vivencia a opressão do homem através das relações de poder, que estão presentes em vários capítulos da obra. No capítulo 10 – Contas – vemos que a permanência da família na fazenda foi negociada mediante a exploração do patrão:
Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os legumes, roídas as espigas de milho, recorria à gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendia-se. Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. De repente estourava:
- Conversa. Dinheiro anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do chão não se trepa.
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia. (RAMOS, 2002, pag. 92)
O romance foi escrito em 1938, mas se comparado com a realidade atual brasileira, pode ser considerado atualíssimo. O Brasil é um país onde as desigualdades sociais e a corrupção crescem gradativamente, aumentando a exclusão e as injustiças sociais das populações mais carentes. Em Vidas Secas, o autor torna evidente a realidade injusta, desumana e desigual do sertão do Nordeste, mas essa realidade, atualmente, atinge muitas regiões brasileiras também esquecidas, marcadas por exclusão social, constituídas por milhares de famílias que vivem abandonadas pelo governo e pela sociedade.
Vidas Secas é uma obra literária que retrata a condição social humana através da arte: uma obra que transforma a crítica social em arte.
Referências Bibliográficas
COELHO, Victor de Oliveira Pinto. Vidas Secas e o Sol da Esperança: uma análise da obra de Graciliano Ramos. Acesso em 15 de abril de 2016.
DUTRA, Kátia. 119 anos de Graciliano Ramos. 2015. Acesso em 17 de abril de 2016.
HIRATA, Francine e CÍCERO, Pedro Henrique. Vidas Secas e muitos “Fabianos”: uma breve problematização das teorias dos movimentos sociais a partir de uma perspectiva de classe. 6° Colóquio Internacional Marx e Engel. 03 a 06 de novembro de 2009. Acesso em 12 de abril de 2016. [hiperlink (in)disponível]
NOGUEIRA JUNIOR, Arnaldo. Projeto Releituras. Caderno “Mais”. 2013. Acesso em 14 de abril de 2016.
PACHECO, Ana Paulo. O vaqueiro e o procurador dos pobres: Vidas Secas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 60, p. 34-55, abr. 2015.
PATTO, Maria Helena Souza. O mundo coberto de penas Família e utopia em Vidas secas. Estudos Avançados, n. 26, p. 76, p. 225-236, 2012. Acessado em 22/04/2016.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Editora Record, 2002.
REIS, Zenir Campos. Tempos futuros – Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Estudos Avançados, n. 26, p. 76, p. 187-208, 2012. Acessado em 22/04/2016.
A Política e suas Interfaces → Arte e Política → Literatura e Política → A realidade social e a linguagem no romance Vidas Secas