Paidéia: A Educação dos Filósofos

12/10/2017 21:11

            Depois de abordada a questão da educação relativa aos guardiões, Sócrates passa a considerar sobre a educação dos filósofos, o que se dá principalmente nos Livros VI e VII. De uma forma geral, no conjunto da obra, esta questão se torna importante porque, pelas qualidades e atributos dados ao autêntico filósofo, este se torna o mais apto a governar a cidade. Esta questão importa dentro do âmbito pedagógico porque aqui Sócrates discorre sobre como deve ser a educação do filósofo. Mas, porque o filósofo é o mais apto a guardar as leis e os costumes da cidade e, por isso, ser nomeado guardião da cidade? Sócrates compara o filósofo e o não filósofo com aquele que tem a visão clara e aquele cujo sentido da visão lhes falta (484c). Ora, sendo o filósofo aquele que é capaz de distinguir o justo do injusto, de promulgar leis sobre o belo, o justo, o bom, além de preservar as que já existem (484d) será ele, pois, que de preferência se fará governante.

            Mas antes de tratar de forma mais específica sobre a educação do filósofo, o que de fato só será feito de forma mais detalhada no Livro VII, Sócrates passa a considerar sobre a natureza do filósofo, seus atributos e qualidades, no Livro VI (485ae – 486ae). Este será também o caminho que iremos percorrer.

            O filósofo é um apaixonado pelo saber, pois está sempre em busca daquilo que possa revelar-lhe algo sobre a verdadeira essência das coisas, sempre aspirando à verdade integral (pois sabedoria e verdade estão estritamente relacionadas). Por conseguinte, só pode ter aversão à mentira e recusa em admitir voluntariamente a falsidade, pois aquele que é amigo da verdade e da sabedoria não pode sê-lo simultaneamente da mentira e da falsidade.

            O filósofo deve ser moderado e de modo algum ambicioso “porquanto os motivos pelos quais se afadiga para obter a riqueza, com o seu acompanhamento de desperdícios, a ninguém convêm menos do que a ele” (485e). Não deve ser baixo ou mesquinho, pois estes vícios são contrários a uma alma que pretenda alcançar sempre a universalidade do divino e do humano.

            O filósofo deve ser justo, sociável e amável, além de ter uma boa aptidão e facilidade para aprender as coisas, ser culto e ter uma boa memória e todas estas qualidades “são necessárias e se ligam umas às outras numa alma que pretende atingir o Ser de forma suficiente e cabal” (487e). De onde se deve concluir que é “a pessoas assim, aperfeiçoadas pela educação e pela idade, e só a essas, que [se deve] entregar a cidade” (487a).

            A questão pedagógica que surge como consequência de toda esta visão é a de como educar e formar tais indivíduos. Qual é o gênero de ensino que lhe convém para que possa desenvolver toda espécie de virtude? Como se deverá educá-lo para que evite cair no extremo oposto, semeando e plantando em um terreno inconveniente? (492a).

            A proposta educacional de Platão (usando Sócrates como personagem, é sempre bom frisá-lo) começa a se desenvolver a partir de 502d, sobre a maneira e a partir de quais ciências e exercícios e em que idade se deve educar os “salvadores da constituição”. É preciso que se exercitem em muitas ciências, “para ver se são capazes de aguentar estudos superiores ou se sentem receio deles” (504a), é preciso que se eduquem nos exercícios físicos (504d), sempre com vistas a esse estudo mais alto e mais elevado que existe. Platão entende ser necessário submeter os educandos a duras provas de habilitação, as quais incluem avaliação da faculdade mnemônica, da resistência à dor e à sedução e da capacidade demonstrada na execução de trabalhos árduos. Os aprovados nesses exames devem prosseguir no processo educativo, estudando matemática e, posteriormente, a dialética. Aos reprovados cabe trabalhar para a comunidade, prestando os mais diversos serviços: comércio, manufatura de bens de consumo, etc.

            O Livro VII inicia com a alegoria da caverna com a seguinte frase: “imagina a nossa natureza, relativamente à educação ou à sua falta, de acordo com a seguinte experiência” (514a) (conheça em detalhes esta fascinante história através do link: O Mito da Caverna). Vemos assim, através da alegoria da caverna, que a educação que revela, para o conjunto dos cidadãos, o melhor governante é uma espécie de ascese espiritual: a alma que atinge o topo do conhecimento se acha em plenas condições de governar, mas não deve se julgar superior aos demais homens e mulheres. Ao contrário, deve retornar ao mundo de sombras em que eles vivem e, graças ao seu olhar mais acurado, ajudá-los a ver com maior nitidez no escuro.

            A educação deve formar o filósofo não apenas para a vida contemplativa, mas também para a vida ativa. É preciso forçar os habitantes mais bem dotados a voltar-se para a ciência que anteriormente dissemos ser a maior [a ciência do bem e da verdade]” (519c) e, uma vez que tenham realizado e contemplado suficientemente o bem, partilhar dos trabalhos que existe entre todos os indivíduos da cidade, com o fim de poder proporcionar o bem-estar a todos, mesmo que isto signifique ter que habituar novamente os olhos as trevas, uma vez acostumado com a luz do Sol e “os fazer levar uma vida inferior, quando lhes era possível ter uma melhor” (519d).

            A formação e educação dos filósofos exige grande dedicação e esforços por parte dos educandos. Assim como nossos olhos não conseguem contemplar o sol, fonte de toda luz do mundo visível, o Bem, ideia suprema que governa o mundo supra-sensível, não pode ser contemplado se os olhos da alma não forem cuidadosamente preparados para esse fim. A situação, ilustrada na alegoria da caverna, prevê que o homem possa se libertar dos conhecimentos falsos, enganosos, gerados pela opinião (doxa), que são apenas sombras ou simulacros dos conhecimentos verdadeiros. Tal ruptura, porém, não é imediata, pois aquele que foi acostumado a viver nas sombras, quando olha pela primeira vez o sol, tem sua vista ofuscada e se recusa a continuar a observá-lo. O mesmo se dá com respeito às verdades e à ideia do soberano Bem. Por essa razão, os estudos a serem feitos posteriormente (como a matemática e dialética) devem prosseguir por muitos anos a fim de revelar quem possui alma de filósofo.

            Esta educação especial só será dada depois de uma educação geral (a música, a ginástica e as artes), e não poderá ser dada a todos os indivíduos. Será composta, principalmente, além da matemática (aritmética, geometria), pela astronomia, música e, por fim, depois dos trinta anos, a dialética. Vejamos em detalhes como isto se dá, começando pela matemática (522c – 527a)

            A ciência dos cálculos, dos números (aritmética) e geometria devem ser convenientes aos cidadãos e é mesmo necessária e indispensável, não apenas por uma razão de ordem prática, como no uso que é feito pelos comerciantes, retalhistas ou até mesmo nas questões de guerra, como no caso da geometria, mas principalmente porque “obriga a alma a servir-se da inteligência em si para chegar à verdade pura” (527b). A matemática é a ciência “que tem o poder de arrastar a alma do que é mutável para o que é essencial” (LAZARINI, 2007, p. 49). Sendo uma ciência “que prepara a inteligência para conhecer as realidades imutáveis, sem o auxílio dos sentidos” (LAZARINI, 2007, p. 49). Por ser considerada uma ciência que prepara a inteligência para conhecer as realidades imutáveis, a matemática tem um caráter propedêutico, ou seja: “as matemáticas ‘não são pensadas para fins práticos, mas para fins de elevação (epanagoghé) e conversão (anastrofé) do espírito para atingir a disciplina suprema, a dialética ou filosofia, que prescinde de qualquer elemento sensitivo’” (MANACORDA, 1989, p. 57 apud LAZARINI, 2007, p. 48). A dialética, esta sim, como veremos mais adiante, é considerada a ciência mais nobre e grandiosa: “Enquanto as ciências matemáticas se fundam em elementos visíveis e precisos como as figuras geométricas, a dialética apóia-se, no diálogo e no rigor de raciocínio para alcançar as ideias inteligíveis” (LAZARINI, 2007, p. 51).

            Outra ciência importante é a da astronomia e com ela a música, pois “assim como os olhos foram moldados para a astronomia, os ouvidos foram formados para o movimento harmônico e as próprias ciências são irmãs umas das outras, tal como afirmam os Pitagóricos” (530d). A primeira é necessária à agricultura e à navegação. Nos ensina acerca do movimento dos astros, as variações do dia, da noite, dos anos, como é formado o céu e o que ele contém. A segunda, pelas razões que já foram expostas anteriormente.

Julgo que o estudo metódico de todas estas ciências que analisamos, se atingir o que há de comum e aparentado entre elas e demonstrar as afinidades recíprocas, contribuirá para a finalidade que pretendemos e o nosso esforço não será vão (531d).

            Por fim, há o estudo da dialética, o método através do qual se pode alcançar a essência das coisas – “sem se servir dos próprios sentidos e só pela razão” (532a) –, a essência do bem, do belo, do inteligível.

A libertação das algemas e o voltar-se das sombras para as figurinhas e para a luz e a ascensão da caverna para o Sol, uma vez lá chegados, a incapacidade que ainda tem de olhar para os animais e plantas e para a luz do Sol, por outro lado, o poder contemplar reflexos divinos na água e sombras, de coisas reais, e não, como anteriormente, sombras de imagens lançadas por uma luz que é, ela mesmo, apenas uma imagem, comparada com o Sol – são esses os efeitos produzidos por todo este estudo das ciências que analisamos; elevam a parte mais nobre da alma à contemplação da visão do mais excelente dos seres (532c).

            Todo este processo só é possível por meio da dialética. É através da dialética que se pode eliminar as hipóteses e se elevar ao caminho do autêntico princípio, “e que realmente arrasta aos poucos os olhos da alma da espécie do lodo bárbaro em que está atolada e eleva-os às alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que analisamos” (533d).

            Platão fala em graus de conhecimento do mundo sensível e do mundo inteligível, a fim de poder explicar os diferentes modos de conhecimento. E o modo pelo qual ascendemos do mundo sensível ao mundo inteligível é através da dialética.

            Os diferentes graus de conhecimento são aquisições que se obtém através do processo pedagógico. O primeiro modo de conhecimento do mundo é a eikasia: trata-se do domínio da opinião (doxa) que se forma de modo impreciso, incompleto, sem um conhecimento seguro sobre o mundo. O segundo grau é a pistis (crença, convicção): é um conhecimento algo mais elaborado que inclui as ciências naturais como a botânica, a zoologia, biologia etc. Mas é ainda um conhecimento do mundo sensível, mutável, imperfeito, marcado, por isso mesmo, pela imprecisão do conhecimento sensível. É objeto das crenças. Para além do mundo sensível há o mundo inteligível e o primeiro tipo de relação com essa realidade é caracterizado pela matemática, que inclui a aritmética e a geometria. Por certo, porque as figuras geométricas são entes ideais, atingindo um maior nível de abstração, embora esta se dê ainda com alguma relação com o mundo sensível. É ainda um mundo de hipóteses. A dianoia (a faculdade de raciocínio; inteligência discursiva) se exerce sobre as coisas matemáticas e prepara o espírito para o conhecimento das Ideias. A geometria nos prepara para a sabedoria. “Que ninguém entre aqui se não for geômetra” era a inscrição que constava no pórtico da escola fundada por Platão, a Academia. O conhecimento das realidades inteligíveis só é dado pela intuição intelectual (a faculdade da alma denominada noesis ou nous), por meio da qual atingimos o conhecimento verdadeiro das coisas. O mundo das Idéias, o Hiperurânio, só pode ser captado pela parte mais elevada da alma, isto é, pelo intelecto.

            A dialética platônica tem como ponto de partida o senso comum, a opinião, submetidos a um exame crítico. A Filosofia deve, por meio do diálogo, conduzir seu interlocutor a descobrir ele próprio a verdade. Esse método dialético visa expor a fragilidade das falsas opiniões e superar tais obstáculos, fazendo com que o interlocutor tenha consciência disso. A opinião não se dá conta de sua ignorância. Através do diálogo, a opinião, que se crê certa de si mesma, ao se expor se revela contraditória e inconsequente. Mas o principal objetivo da dialética é o de conduzir paulatinamente o interlocutor à intuição imediata de uma essência, de uma verdade, ou seja, encontrar a essência material ou espiritual daquilo que se queira apreciar. Para que se obtivesse sucesso na investigação dever-se-ia discutir sucessivamente todos os conceitos afins para evitar confusão de ideias. Assim, dialogando, afastavam-se as impressões da linguagem, até se chegar ao sentido essencial daquilo que se discute. Platão, com maestria, conduzia o debatedor até o momento preciso em que a verdade se manifestava.

            A dialética, o estágio final da educação do filósofo, é vista como um jogo sério que procura a verdade de  modo dialético e não simplesmente a refutação dos oponentes. Os homens comuns se detêm no nível da opinião (da doxa). Os matemáticos ascendem ao nível da dianoia. Só os filósofos (como o entende Platão) tem acesso à noesis. Por isso o Filósofo é também o Dialético: somente através da dialética, o intelecto supera as sensações e todos os elementos ligados ao sensível; capta as Ideias na sua pureza, ascendendo de Ideia em Ideia até a Ideia Suprema, o Incondicionado

 

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