Arya Stark: o norte se lembra
por Alexsandro M. Medeiros
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postado em jul. 2017
Ao mesmo tempo em que a série Game of Thrones retrata a mulher de acordo com os costumes da época, ela rompe com os valores da tradição patriarcal ocidental, como é o caso de Arya Stark. Arya está entre os personagens femininos que rompe em todos os sentidos com o papel social feminino dado pela sociedade patriarcal. Penkala, Pereira e Ebersol (2014, p. 167) ressaltam como Game of Thrones “tem personagens femininas fortes e bem construídas, com grande importância na trama, que não somente representam a mulher de maneira complexa e profunda como subvertem estereótipos e desafiam arquétipos de gênero”. São as múltiplas facetas femininas, como afirmam França e Fernandes (2016, p. 5): “Elas são mães, rainhas, órfãs, prostitutas, guerreiras, herdeiras de tronos e mães de dragões”. Comiotto e Guizzo (2016, p. 4), analisando a primeira temporada da série, se referem a Arya como uma representação vanguardista e destaca o seguinte diálogo entre Arya, sua irmã Sansa Stark e o pai Ned Stark, quando este já era a mão do Rei em King’s Landing:
Ned: Enviarei vocês duas de volta a Winterfell.
Sansa: O quê?
Ned: Ouça...
Sansa: E Joffrey?
Arya: Vai morrer por causa da sua perna? Por isso nos enviará de volta?
Ned: O quê? Não!
Sansa: Por favor, pai, não!
Arya: Não pode fazer isso. Tenho aulas com Syrio, finalmente estou ficando boa.
Ned: Não é castigo. Quero-as de volta em Winterfell para sua segurança.
Arya: Podemos levar Syrio?
Sansa: Quem se importa com seu ridículo professor de espadas? Não posso ir. Devo me casar com o príncipe Joffrey. Eu o amo, tenho que ser sua rainha e ter seus filhos!
Arya: Sete infernos!
Vemos aqui como os anseios de Arya são diferentes daqueles de sua irmã Sansa Stark. Enquanto a primeira se preocupa com suas aulas com o espadachim, a segunda se preocupa com seu casamento com Joffrey. Essa distinção aparece desde os primeiros episódios da série. Quando Arya, Sansa e Ned Stark ainda estão em Winterfell, na casa Stark. Arya rejeita de todas as formas o papel social feminino: “nunca esteve disposta a aceitar esse destino e refuta de todas as formas tudo aquilo que a obrigue a ter que se prestar a um papel feminino tradicional” (TOLEDO, 2014, p. 33). Reis (2016, p. 52) ressalta como Arya é desenvolta, astuta, questionadora e forma um contraponto com as características de sua irmã.
Enquanto Sansa Stark sonha com o dia do seu casamento, Arya se recusa a aceitar o papel feminino de uma sociedade patriarcal e rompe completamente com este estereótipo. Veste-se como menino tanto em sua casa em Winterfell e, por isso, “constantemente é vítima de apelidos jocosos e confundida com um garoto, isso porque foge do padrão estético esperado para uma menina de sua idade” (REIS, 2016, p. 52) quanto para se proteger quando está em fuga. Tem uma personalidade forte e nem um pouco delicada ou preocupada com vaidades estéticas.
Logo no primeiro episódio Winter is coming, enquanto os filhos de Ned Stark aparecem treinando arco e flecha, suas filhas aparecem bordando sentadas. Mas algo inusitado rouba a cena: enquanto Bran se esforça para acertar o alvo, de repente uma flecha acerca exatamente o alvo, mas não foi Bran, e sim Arya, que antes estava bordando, o que provoca a ira de Bran e sai correndo atrás da irmã. Enquanto isso, sua irmã Sansa Stark é preparada por sua mãe Catelyn Stark para ficar apresentável ao filho do Rei Robert Baratheon, para uma futura aliança. Sansa deseja ser no futuro “a rainha” e rejeita a ideia de que seu pai não possa consentir seu casamento com o príncipe Joffrey. Trata-se de um casamento por “conveniência diplomática”.
Desde pequena Arya revela um espírito guerreiro. Ganhou do seu irmão Jon Snow uma pequena espada de presente, quando partiu para Porto Real, junto com seu pai, que foi nomeado mão do Rei. Sansa Stark prefere as agulhas de costura e a própria rainha Cersei pediu a ela que lhe fizesse um vestido. “Sansa é ‘feminina’, no sentido de corresponder aos ideais tradicionais da feminilidade. Ela é delicada, educada, vaidosa” (FRANÇA; FERNANDES, 2016, p. 13). Algo bem diverso da representação de Arya.
Um episódio revela a personalidade forte de Arya, quando esta está brincado de espadas, com pedaços de pau, com o filho do açougueiro, Mycah. Quando Arya se distrai com a chegada de Sansa e o príncipe Joffrey o jovem plebeu acerta acidentalmente Arya ao que Joffrey se aproxima e interpela o filho do açougueiro. O diálogo é reproduzido por Oliveira e Bastos (2016, p. 101):
Joffrey: E quem é você garoto?
Plebeu: Mycah, meu senhor.
Sansa: É filho do carniceiro.
Arya: Ele é meu amigo.
Joffrey: Um filho de carniceiro que quer ser cavaleiro? Pegue a sua espada, filho de carniceiro. Vamos ver se você é bom.
Plebeu: Ela me pediu, meu senhor. Ela me pediu.
Joffrey: Sou seu príncipe, não seu senhor. E falei para pegar sua espada.
Plebeu: Não é uma espada, príncipe. É apenas um graveto.
Joffrey: E você não é um cavaleiro. É apenas o filho de um carniceiro. Foi na irmã da minha senhorita que você bateu, sabia?
Arya: Pare!
Sansa: Arya, fique fora disso.
Joffrey: Não vou machucá-lo... muito.
Nesse momento Arya desfere um golpe com o pedaço de madeira nas costas de Joffrey que, irado, se volta contra Arya mas é atacado pelo lobo Nymeria que morde o seu antebraço. Um detalhe curioso é que o próprio nome dos lobos de Sansa e Arya já revelam algo de suas identidades, respectivamente, Lady e Nymeria. O nome do lobo de Arya revela sua admiração pelas mulheres guerreiras já que, como afirma Toledo (2014, p. 33): “dentro da mitologia da saga, [Nymeria] foi uma Rainha Guerreira que conquistou o sul de Westeros, na região de Dorne, após fugir de uma guerra no antigo continente de Essos”.
Já em King’s Landing, quando seu pai afirma que seu destino é aquele reservado às mulheres, Arya diz a seu pai que não quer ser uma dama, seus anseios não se vinculam ao matrimônio e à maternidade. Quando o pai de Arya diz que ela se casará com um lorde e reinará como uma princesa, e seus filhos serão cavaleiros, princesas e lordes, ela olha para o pai e diz: “não, não sou assim” (1T, E5) e volta para o seu treinamento de espadachim. Arya “é apenas uma criança, mas sua personalidade é retratada como a de uma garota ‘durona’, com uma mentalidade racional, que prefere aprender a usar uma espada a experimentar vestidos” (FRANÇA; FERNANDES, 2016, p. 5-6). Reis (2016, p. 52) reproduz o diálogo entre Arya e seu pai nesse ínterim:
“E eu posso ser conselheira do rei, construir castelos ou me tornar Alta Septã? – Você – disse, Ned, dando-lhe um beijo suave na testa – casará com um rei e governará seu castelo, e seus filhos serão cavaleiros, príncipes e senhores e, sim, talvez mesmo um Alto Septão. Arya fez um trejeito. – Não – ela protestou –, esta é Sansa – dobrou a perna direita e voltou aos exercícios de equilíbrio” (MARTIN, 1996, p.184).
O ponto de virada na narrativa de Arya acontece com a morte de seu pai – Ned Stark –, iniciando sua rota de fugas e vingança, conforme sugerem Toledo (2014) e Reis (2016, p. 52). Arya testemunha a morte do pai, julgado como traidor do reino. “Arya cria então um ritual todas as noites, dizendo o nome de cada pessoa que considera que fez mal a ela, desejando suas mortes” (TOLEDO, 2014, p. 34). Arya “sussurra todas as noites antes de dormir os nomes das pessoas responsáveis pela morte de seus familiares, fazendo uma promessa a si mesma de matá-los sem piedade” (FRANÇA; FERNANDES, 2016, p. 6).
Depois irá testemunhar indiretamente a morte da mãe e do irmão Robb Stark, que serão traídos por Walder Frey e Lorde Bolton. Em relação ao pai, Arya chega a vê-lo prestes a ser decapitado. Em relação à mãe e ao irmão, ela estava sendo levada para eles pelo Cão de Caça Sandor Clegane, mas ao chegar na grande ponte fortificada pela Casa Frey – no local chamado de As Gêmeas –, ela vê os soldados de Winterfell sendo mortos e, logo em seguida, o lobo de Robb Stark. Ela compreende então que está diante de uma chacina que culminou com a morte da sua mãe e de seu irmão. Mas antes que ela pensasse em fazer algo ela será tirada dali por Sandor Clegane. Mas não sem antes ver os soldados de Walder Frey carregando a cabeça do lobo costurada no corpo de seu irmão e gritando: o Rei do Norte, o Rei do Norte (3T, E10). Ao longo da estrada com Sandor Clegane, Arya irá encontrar um grupo de soldados que zombam e riem da chacina com os Starks (3T, E10) e irá matar pela primeira vez um homem com golpes de faca.
A medida que Arya vai sendo testemunha da morte de sua família – primeiro seu pai decapitado; depois seu irmão Robb e sua mãe Catelyn, traídos –, aumenta seu desejo de vingança e a narrativa vai demonstrando uma mulher – ainda uma adolescente – com sede de vingança e em busca desse objetivo. Um episódio revela como Arya vai se transformando movida por sua sede de vingança. O Cão de Caça Clegane foi ferido em uma luta contra Brienne de Tarth (4T, E10) e está à beira da morte e pede que Arya o mate. Arya está agachada, olhando de forma impassível para Clegane. Clegane tenta despertar a ira de Arya revelando fatos de como matou o filho do açougueiro e como desejaria, ao invés de ter salvo sua irmã, tê-la estuprado.
Clegane: Morto por uma mulher. Aposto que você gostou. Vá, vá com ela. Ela ajudará. [Arya apenas balança a cabeça em sinal negativo]. Sozinha você não viverá um dia.
Arya: Eu viverei mais do que você.
Clegane: Lembra onde fica o coração? Dane-se. Eu estou pronto. Vamos, garota. Outro nome fora de sua lista. Você sempre prometeu matar-me. [Arya não responde nada, apenas olha para Clegane]. Eu matei seu amigo, o ruivo [...] Sangrou no meu cavalo deixando o fedor por semanas. E sua irmã, sua bela irmã, eu deveria tê-la capturado, durante o incêndio na Baía. Deveria tê-la estuprado. Seria minha única boa memória. Eu precisarei implorar? Faça-o. Faça-o. Faça-o.
Arya não parece sentir nenhuma compaixão ou misericórdia. Ela apenas se levanta, pega a bolsa de moedas, vira-se de costas e vai embora.
Depois de passar por várias aventuras entre fugas e prisões, Arya, sozinha, decide ir para a Muralha, mas ao invés disso segue caminho para Braavos, usando a moeda que Jaqen H'ghar tinha dado a ela, junto com a frase valiriana valar morghulis – todos os homens devem morrer –, onde ela será iniciada na guilda dos Homens sem Rosto para se tornar ninguém – para se tornar parte desse grupo, a pessoa deve deixar sua identidade de lado e virar “ninguém” –, assim como todos os Homens sem Rosto: uma sociedade secreta de assassinos muito antiga com raízes em Valíria que são temidos tanto pelas suas habilidades mortíferas, como pela habilidade de mudar de aparência em segundos. A resposta para a frase valar morghulis deve ser valar dohaeris – todos os homens devem servir.
Chegando em Braavos ela encontra a Casa do Preto e Branco: o Templo dedicado ao Deus de Muitas Faces, onde os Homens sem Rosto se reúnem e são feitos alguns serviços religiosos à comunidade, como limpar os mortos.
Em sua primeira investida, Arya mata Meryn Trant, usando uma das máscaras do Deus de Muitas Faces. Depois de passar por um processo de aprendizado em Braavos, Arya prossegue com sua sede de vingança. Arya corta a garganta de Walder Frey, no mesmo salão em que ele matou seu irmão e sua mãe no episódio conhecido como o Casamento Vermelho.
Finalmente a sétima temporada da série inicia de forma surpreendente com Arya disfarçada de Walder Frey – algo que ela aprendeu a fazer na sociedade dos Homens sem Rosto, na Casa do Preto e Branco. Em seu aprendizado Arya aprendeu a como “vestir” uma face e assumir a verdadeira aparência do indivíduo escolhido. Em um banquete oferecido por Walder Frey – na verdade Arya –, ela diz (7T, E1):
Vocês devem estar se perguntando por que os trouxe aqui. Afinal de contas, tivemos um banquete recentemente. Desde quando o velho Walder oferece dois banquetes em uma quinzena? Não serve para nada ser Senhor das Terras Fluviais se você não puder celebrar com a sua família [...] Reuni todos os Freys que são importantes para poder dizer quais são meus planos para esta Casa, agora que o inverno chegou. Mas antes... um brinde! [...] Talvez eu não seja o homem mais agradável devo admitir, mas estou orgulhoso de vocês. Vocês são minha família, os homens que me ajudaram a matar os Starks no Casamento Vermelho. Saúde. Homens corajosos, todos vocês. Mataram uma mulher grávida. Cortaram a garganta de uma mãe de cinco filhos. Mataram seus convidados depois de chamá-los à sua casa. Mas vocês não mataram todos os Starks. Não, não. Esse foi o erro de vocês [...] Se sobrar um lobo vivo as ovelhas não estarão mais seguras.
Todos os convidados do banquete começam a dar sinais de envenenamento após beber o vinho oferecido e Arya revela sua face, tirando a máscara de Walder Frey. Arya se dirige para uma das moças que estava na mesa ao lado dela e diz: “Quando perguntarem o que aconteceu aqui, diga que o Norte se lembra. Diga que o inverno chegou para a Casa Frey”
Arya está apenas iniciando sua saga de vingança.
Referências
COMIOTTO, Andressa B.; GUIZZO, Bianca S. Representações femininas na série Game of Thrones: uma análise da personagem Arya Stark. 2º Colóquio ULBRA de Extensão, Pesquisa e Ensino. ULBRA, campus Canoas, 2016.
FRANÇA, Rosiane de M.; FERNANDES, Kamila B. As Mulheres de Game Of Thrones: Uma Análise Discursiva das Representações Femininas na Narrativa Seriada. XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo, SP: 05 a 09 de setembro de 2016.
MARTIN, George R. R. A Guerra dos Tronos. São Paulo: Leya, 1996.
OLIVEIRA, Amanda M.; BASTOS, Rodolpho A. S. M. Gênero e imagem: reprodução do estereótipo donzelesco a partir da personagem Sansa Stark, da série Guerra dos Tronos. In: ROSAS, Maria F. E.; GONZALEZ, Eric P.; LUNELLI, Isabella C. (orgs.). Conhecimento, iconografia e ensino do direito. São Leopoldo: Casa Leiria, 2016. Vol. 2.
PENKALA, Ana P.; PEREIRA, Lucas P.; EBERSOL, Isadora. Arquétipos complexos de gênero em Game of Thrones: Daenerys, nascida da tormenta, a puta, a guerreia, a mãe. Paralelo 31, ed. 2, p. 167-186, jul. 2014. Acesso em 02/07/2017.
REIS, Natália J. de Sousa. Representações femininas na série de TV Game of Thrones. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social). Faculdade de Comunicação. Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, 2016.
TOLEDO, Ludmila S. Representações Femininas na Literatura de Fantasia: Uma análise sobre a construção das personagens femininas em “As Crônicas de Gelo e Fogo”. Monografia (Bacharelado em Comunicação Social). Faculdade de Comunicação. Universidade de Brasília. Brasília, 2014.
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