Marco Aurélio
Marco Aurélio foi um imperador romano que viveu entre 121 e 180 d. C. Na infância, teve uma educação intelectual refinada, com aulas de gramática, literatura, retórica, poesia (tinha preferência por poetas como Ênio, Plauto e Névio), geometria, música e filosofia (foi influenciado pela doutrina estoica e sobretudo por Epicteto). “Sua educação foi realizada por um preceptor com aulas em casa, nela ele estudou Homero, Hesíodo, estudou as artes da música, dança, pintura com Diogneto. Estudou de retórica com o erudito Frontão, a quem teve muita ligação respeitosa e douradora” (Duarte, 2023, p. 42).
Em 161, aos 39 anos, ele ascende ao o cargo de mais alto poder no mundo antigo, o de Imperador Romano, após a morte do então imperador e seu tio, Antonino Pio. Esta foi a primeira vez que o Império Romano foi governado por dois imperadores pois Lúcio Vero ascendeu ao trono junto com Marco Aurélio. Marco Aurélio nutria grande admiração por seu tio Antonino. “A admiração que vemos em Marco por Antonino merece alguns apontamentos. Para o ele, o sábio deve ser autárquico, deve se bastar e Antonino personifica esse estado. Contudo, ainda mais que isso, ele é a própria autonomia do universo” (Bastos, 2021, p. 59).
Ao ascender ao trono, o Senado romano lhe atribuiu então os títulos de imperador e augusto, sendo depois foi formalmente eleito pontífice máximo, sacerdote-chefe dos cultos oficiais. A partir de então foi chamado Marco Aurélio Antonino Augusto. O imperador morreu aos 58 anos em 17 de março de 180, de causas desconhecidas.
O Imperador que era Filósofo
No período em que permaneceu no poder (161 d.C – 180 d.C), o imperador adotou a filosofia estoica. Destacando-se dos demais imperadores pelo seu interesse e dedicação aos estudos filosóficos, Marco Aurélio chegou a escrever a obra Meditações, sendo considerada uma das melhores fontes para a compreensão da antiga filosofia estoica. Em suas Meditações, o imperador filósofo agradece “aos deuses o fato de ter se apaixonado pela filosofia, de não ter sido influenciado por nenhum sofista, nem ter se sobrecarregado de estudar silogismos” (Duarte, 2023, p. 42). Ele também se destacou pela liberdade concedida aos cristãos, embora inicialmente seu governo tenha dado continuidade a perseguição aos cristãos e ao cristianismo.
A sua obra Meditações (hypomnemata) oferece uma visão de sua vida interior, mas não possui datas em sua maior parte e faz poucas referências a eventos externos. A hypomnemata, que na verdade pode ter diferentes traduções (como recordações, anotações, comentários), é composta de fragmentos (aforismos) e está dividida em 12 partes, sendo publicada apenas postumamente por Vitorino, amigo de Marco Aurélio. “Τὰ εἰς ἑαυτόν (Para Mim Mesmo) foi o nome pelo qual o documento foi batizado originalmente” (Bastos, 2021, p. 52). A obra foi escrita em grego, refletindo o processo de fusão das culturas romana e grega que estava em curso, e não possui uma organização por temas ou subcapítulos.
Sendo de orientação estoica, em particular da orientação do professor e filósofo estoico Epicteto (primeiro século da nossa era), a obra também incorpora elementos do platonismo e do epicurismo e foi escrita provavelmente durante as campanhas militares de 171-175 como exercícios filosóficos para a própria orientação do imperador e seu autoaperfeiçoamento. “Mesmo sendo um texto com notoriamente a presença do discurso de Epicteto, as notas aurelianas formam expressões de pensamentos eficazes para a transformar o seu modo de viver recorrendo a Platão (VII, 35, 63, 93) e Epicuro (VII, 72) e (IX, 41)” (Duarte, 2023, p. 54).
A obra está inserida dentro de uma concepção desenvolvida pelo estoicismo da filosofia como uma arte do viver, não raro com um certo pessimismo, e aborda, entre outras coisas, o tema da fugacidade do tempo e a precariedade da vida: “Uma das características do pensamento de Marco Aurélio, a que mais impressiona os leitores de Recordações, é a insistência com que ele tematiza e reafirma a caducidade das coisas, sua passagem inexorável, sua monotonia, insignificância e substancial nulidade” (Reale; Antiseri, 2003, p. 331).
Há ainda questões relacionadas aos deuses e ao cosmo, questões sobre como o homem deve se posicionar frente ao destino, à morte e à dor e a questão da ética (onde se destaca a sua visão do dever moral que dá sentido ao viver). Neste ponto, o imperador filósofo se distanciou, em parte, dos estoicos, ao considerar apenas a ética e rejeitar a lógica e a física.
Apesar de fundamentada na concepção de filosofia desenvolvida sobretudo pelo estoicismo, a obra não é um tratado sistemático de filosofia e não tem como objetivo expor a doutrina estoica, como é o caso também da obra Diatribes de Epicteto. “São obras que visam menos informar do que formar almas [...] o objetivo delas é produzir certo efeito e transformação na alma, seja por meio da leitura ou da escrita” (Almeida, 2015, p. 7).
Encontramos em Marco Aurélio a ideia que já aparece na obra de Epicteto de uma filosofia que deve ser entendida a partir de dois componentes: theōrēmata e askēsis. A parte prática da filosofia, askesis (exercício), marca a diferença entre uma filosofia pensada como uma forma de vida e a filosofia pensada apenas de forma teorética (theoremata). A obra Meditações se caracteriza pelo aspecto prático da filosofia de Marco Aurélio, ou seja, por exercícios de repetição e reformulação em cima dos princípios estoicos (saiba mais no texto abaixo: Os Exercícios Espirituais em Marco Aurélio), bem mais do que no aspecto da filosofia que corresponde à teoria.
É assim que Marco Aurélio escreve sem qualquer objetivo de publicação mas simplesmente para si mesmo, dia após dia, como um exercício. Aqui não há preocupação com explicações detalhadas sobre a doutrina estoica. O objetivo é relembrar a si mesmo de novo e de novo aquilo que já foi assentido e, por isso, são formulações quase sempre compactas e muitas vezes obscuras para o leitor contemporâneo (Almeida, 2015, p. 27).
O Filósofo que era Imperador
Como filósofo, o imperador Marco Aurélio tinha várias preocupações relacionadas a conduta moral, refletindo sobre este e outros aspectos em sua obra, como por exemplo sua preocupação em direcionar o homem e o governante no caminho da virtude, com ênfase nas quatro virtudes: clementia, iustitia, moderatio e pietas.
Em algumas passagens de suas Meditações, vemos o filósofo aconselhando o imperador não apenas em relação a conduta moral, como também a lidar com os homens, com a solidão que o seu lugar de governante o coloca ou de se encontrar muitas vezes sozinho diante dos dilemas humanos. Por isso, como imperador ele precisa aprender que em qualquer lugar “terá de lidar com o mesmo tipo de rebanho. Ou seja, rei ou tirano, o lugar de governar seres humanos carrega o ônus de lidar com bestas sorrateiras” (Meditações, X, 23 apud Duarte, 2023, p. 43).
Ao expor suas reflexões nas Meditações observamos como os preceitos da doutrina estoica devem fundamentar a vida de um governante que deve prezar por uma existência virtuosa.
Em Roma, um dos compromissos tradicionais que o governante devia assumir era com a virtus, um valor fundamentalmente romano essencial ao homem direito que considera, em ordem de importância, a res publica, a família e, por último, a si próprio. Consolida-se, assim, um modo de atuação a serviço do Estado. Dessa forma, a virtus alude ao homem ligado à vida pública, sendo composta por uma série de máximas de comportamento que faziam referência à vida coletiva e que estavam em consonância com as virtudes estabelecidas pela Stoá, como a fides, sapientia, moderatio, honos, clementia, iustitia, pietas, felicitas e liberalitas (Onesko, 2017, p. 92).
Deste conjunto de virtudes, aquelas que mais frequentemente são encontradas nas Meditações de Marco Aurélio, conforme Onesko (2017), são: clementia (virtude do homem misericordioso e ponderado), iustitia (alusão aos bens que são distribuídos de acordo com o merecimento individual, equidade e uniformidade das leis), moderatio (virtude do homem que age de maneira comedida, que sabe moderar seus desejos e conter suas paixões) e pietas (necessidade de respeitar as relações com os homens).
Destas virtudes, a justiça representa uma das quatro virtudes bases de boa tarde da tradição filosófica antiga, a exemplo de Platão e Aristóteles. Como imperador, a noção de justiça é importante para que o mesmo possa se distanciar das injustiças cometidas pelos tiranos, estando atento ao cumprimento das leis sociais e disposto a agir com base na justiça. “O imperador obteve, quando jovem, o aprendizado da justiça como um dos elementos de maior relevância. Assim, agradeceu ao filósofo Cláudio Severo por tê-lo instruído acerca de um governo no qual a lei fosse a mesma para todos, sem restrições” (Onesko, 2017, p. 97). Também o seu tio, Antonino, é lembrado nas Meditações: “como um homem dotado de virtudes, entre elas, a justiça. Deste, lembra e admite para si a instrução de ‘distribuir sem erros a cada pessoa conforme o mérito’” (AURÉLIO, 1977, liv. I, p. 53 apud Onesko, 2017, p. 97).
Além da justiça, a clementia é outra virtude que faz parte da idealização do bom imperador, sendo a mais humana dentre as outras virtudes, pois orienta àquele que almeja possuí-la a brandura, a compaixão, a indulgência imperial, em oposição ao castigo e a punição. Em uma sociedade escravocrata como era a Roma imperial, essa virtude não seria fácil de ser posta em prática. Além disso, como o imperador era frequentemente instado a dar algum tipo de sentença, era preciso agir de forma a não ser julgado como cruel.
Marco Aurélio, por sua vez, acatou e defendeu a aplicação dessa virtude [...] compreendeu a necessidade de cuidar do bom caráter e, principalmente, de estar disposto a ser clemente na advertência e na conciliação daqueles que ofendem e molestam os outros. “[...] Estar disposto a aceitar com indulgência a chamada e a reconciliação com os que nos têm ofendido e irritado, assim que eles quiserem retratar-se [...]” (AURÉLIO, 1977, liv. I, p. 49 apud Onesko, 2017, p. 107).
Há um episódio em que o imperador demonstrou a clementia no caso envolvendo Avidio Cássio que se intitulava imperador do Oriente. O Senado romano havia declarado Cássio inimigo público, teve seus bens confiscados, foi assassinado e teve a cabeça apresentada ao imperador. Os acusados de ajudar Avídio também foram mortos. “Marco Aurélio então proibiu ao senado castigar severamente possíveis outros cúmplices dessa traição; ao mesmo tempo em que ordenou que, durante seu principado ou reinado, nenhum senador recebesse a pena de morte” (Onesko, 2017, p. 109). Demonstrou ainda misericórdia e clemência com os filhos dos desertores e as mulheres de suas famílias permitindo que pudessem receber auxílio.
Já a moderação (moderatio) é a virtude segundo a qual deve-se agir de forma comedida e sábia e, no caso do governante, ele deve saber usar o seu poder com moderação e prudência. Esta é a visão que está de acordo com a doutrina estoica, segundo a qual a felicidade consiste em cultivar a moderação, a serenidade e o equilíbrio. Além disso, as paixões, os desejos e os prazeres que a vida proporciona deveriam ser evitados porque poderiam desviar o sábio do caminho das virtudes.
Finalmente a piedade (pietas) “realça a necessidade de respeitar as relações destinadas ao cumprimento do dever do bom cidadão a partir do reconhecimento do cosmopolitismo estoico” (Onesko, 2017, p. 115), ou seja, o respeito a partir da noção cosmopolita de pertencimento à “cidade-mundo”, que faz com que todos os homens sejam iguais. A pietas é um dever que compete a todo cidadão romano e envolve o compromisso com a família (pais e filhos), com a pátria (a cidade e o imperador) e a religião (os deuses). “Essa virtus referia-se a uma conduta sagrada na qual a obediência se revela essencial a todos, sobretudo para com os deuses, o Estado e a família” (Onesko, 2017, p. 115). É o respeito para com as instituições da família e da comunidade.
Filosofia e Educação
A partir da perspectiva de se entender a filosofia como um modo de vida, inevitavelmente somos levados ao tema da educação, em um sentido amplo, pois se há a necessidade de saber como viver bem, há a necessidade de aprender como viver bem. Na antiguidade a educação tem esse aspecto de alcançar a nobreza da alma e tornar cidadãos virtuosos. Não seria diferente no período romano, embora a educação fosse um privilégio das classes mais nobres, como era o caso de Marco Aurélio.
Para alcançar as virtudes de um guerreiro, ter habilidades físicas, senso de dever e honra, a educação adequada deveria promover a coragem. Para ser um bom administrador político, a educação deveria ser baseada na arte da retórica e da persuasão. Para alcançar a mais alta sabedoria e uma vida virtuosa, a educação deveria se pautar na filosofia e, no caso de Marco Aurélio, sobretudo a filosofia estoica.
O modelo de sábio estoico é aquele que, conduzido pela razão, aprende a viver conforme a natureza enquanto aceita o destino que lhe é reservado. Como bem escreveu Marco Aurélio: “Adapto-me a tudo que contigo se harmoniza, ó mundo; nada pra mim é prematuro ou tardio, se pra ti é tempestivo” (Meditações, IV, 23) [...] aqui o modelo de sábio estoico, é aquele que é dirigido e familiarizado com a razão universal, a relação entre ele e o mundo é indissolúvel (Duarte, 2023, p. 79).
Não há como alcançar um modelo ideal de sábio, como pretendido pela doutrina estoica, a não ser pela educação e para o qual é importante a ideia de uma filosofia prática que preconiza a realização de exercícios espirituais como parte desse conhecimento, como já tivemos oportunidade de ressaltar e para o qual remetemos o leitor mais uma vez ao texto: Os Exercícios Espirituais em Marco Aurélio. É através dos exercícios espirituais que se pode atingir o autoaperfeiçoamento, o modelo ideal de sabedoria, atingir a nobreza da alma, a tranquilidade e a serenidade interior.
Referências
ALMEIDA, Henrique Castro de. Arte do viver e exercícios espirituais em Epicteto e Marco Aurélio. 2015. 67f. Trabalho de Conclusão de Curso (bacharelado e licenciatura em Filosofia), Departamento de Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niteóri-RJ, 2015.
AURÉLIO, Marco. Meditaciones. Madrid: Gredos, 1977.
BASTOS, B. de M. Marco Aurélio e Ariston: o Registro Estoico-Cínico de um Príncipe. Prometheus - Journal of Philosophy, 13(36), p. 51-63, 2021. Acesso em: 21 fev. 2025.
DUARTE, José Cleber Leandro. A escrita como exercício espiritual: uma leitura sobre o Marco Aurélio de Pierre Hadot. 2023. 88f. Dissertação (Mestrado em Filosofia), Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, 2023.
Onesko, Stefani de Almeida. O pensamento político estoico e a idealização do governo de Marco Aurélio. 2017. 151f. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Estadual de Maringá, Maringá-PR, 2017.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da Filosofia: filosofia pagã antiga. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003. Vol. 1