Filosofia Africana

 

por Alexsandro M. Medeiros

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postado em nov. 2022

 

        O processo de colonização no Brasil teve um papel fundamental na imagem produzida pelos seres humanos, ontológica e epistemologicamente falando. Por seres humanos, eram considerados o homem branco, europeu, ocidental. Tudo o que fugia desse padrão era considerado como secundário e de menor valor. Foi o que aconteceu com a imagem dos povos africanos, trazidos para o Brasil, não raro, reservado a eles um local de desumanização e exploração de sua humanidade. Dentro dessa visão eurocêntrica, é comum pensar que a filosofia é um conhecimento privilegiado dos povos europeus cuja origem remonta aos povos gregos antigos, como se esse tipo de conhecimento fosse restrito aos povos gregos e não encontrasse similaridade em nenhum outro lugar do planeta Terra. Mas até que ponto isso é verdade?

        Seria o continente africano e os povos de origem africana incapazes de formular algum tipo de conhecimento próximo daquilo que chamamos de conhecimento filosófico ou tudo isso não passa de uma visão deturpada e ideológica (no sentido de falseamento) da realidade?

        Se estamos diante de uma falsa visão da realidade (ideológica), então é preciso desconstruir essa ideologia ocidental que inviabilizou o conhecimento de diferentes culturas, que não aquela do europeu “civilizado”, que tem sido predominantemente hegemônico e tomado como “paradigma e referência essencial na construção identitária dos demais povos ao redor do mundo. Nesse contexto, o conhecimento parte dessas referências para se manter inatingível” (PONTES, 2017, p. 17).

        A verdade é que estamos diante de um epistemicídio (negação ou morte do conhecimento que não pertence ao modelo eurocêntrico, este considerado como modelo de legitimidade do saber). Por epistemicídio o filósofo Mogobe Ramose entende como “(...) o assassinato das maneiras de conhecer e agir (...)” (RAMOSE, 2011, p. 6). Esse epistemicídio fomenta a invisibilidade do conhecimento dos povos africanos, fruto de todo um processo de colonização dos povos europeus (eurocentrismo) que impuseram a sua visão de mundo fazendo com que os povos africanos passassem a não existir como sujeitos humanos e históricos. O colonizador branco, europeu, é sem dúvida o principal responsável por esse epistemicídio, invisibilizando as maneiras de conhecer e agir dos povos africanos conquistados.

O continente europeu, nos seus quase 500 anos de hegemonia escravocrata sobre os povos, redesenhou o olhar frente ao continente africano, inferiorizando-o para manter sua supremacia e redefinir os agentes da história, centrando na Europa todo e qualquer protagonismo já existente, tornando-os referências únicas e universais (PONTES, 2014, p. 48).

         A filosofia não pode, portanto, ficar indiferente a este conhecimento. É fundamental um programa de filosofia que contemple os diferentes tipos de saberes, inclusive como forma de combate ao racismo, sendo necessário, para isso recorrer ao legado filosófico africano. Lutar contra o epistemicídio significa valorizar formas de conhecimento até então marginalizadas. Denunciar e ao mesmo tempo anunciar outras formas de visão de mundo. É nisso que consiste a descolonização do pensamento: a afirmação de que existem outras formas de pensar, que não aquela hegemônica branca e europeia. “Descolonizar [...] É um trabalho árduo e contínuo. Ainda reivindicamos, em todas as áreas do conhecimento, um pensamento afrorreferenciado, com currículos e metodologias que dialogam com nosso modo de construção epistemológica” (MACHADO, 2019, p. 106).

        Há que se fazer, inclusive, a crítica da própria filosofia, se levarmos em consideração, por exemplo, as ideias de filósofos como o francês Barão de Montesquieu ou o filósofo alemão Friedrich Hegel (1770-1831).

        Ao tratar da escravidão no conjunto de sua principal obra, O Espírito das Leis, o Barão de Montesquieu considera a escravidão dos povos negros. E embora para o filósofo, a escravidão não seja “boa por natureza; não é útil nem ao senhor, nem ao escravo: a este, porque nada pode fazer por virtude; àquele, porque contrai com seus escravos toda sorte de maus hábitos e se acostuma insensivelmente a faltar contra todas as virtudes morais” (MONTESQUIEU, 1996, p. 253), todavia, considera que nos países despóticos onde já existe a escravidão, “a escravidão civil é mais tolerável do que em outras partes. Todos devem ficar bastante contentes de terem sua subsistência e a vida. Assim a condição do escravo é pouco pior que a do súdito” (MONTESQUIEU, 1996, p. 253). A escravidão, no entanto, não deve ser aceitável nos governos monárquicos, democráticos e aristocráticos. Mas ao tratar dos escravos negros, o filósofo considera que se o europeu não tivesse escravizado os povos africanos para utilizá-los para abrir terras:

O açúcar seria muito caro se não fizéssemos que escravos cultivassem a planta que o produz. Aqueles de que se trata são pretos dos pés à cabeça; e têm o nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles. Não nos podemos convencer que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, principalmente uma alma boa, num corpo todo preto [...] É impossível que suponhamos que estas pessoas sejam homens, porque se supuséssemos que eles fossem homens, começaríamos a crer que nós mesmos não somos cristãos. Espíritos pequenos exageram demais a injustiça que se fez aos africanos (MONTESQUIEU, 1996, p. 257).

        No século XIX, o filósofo alemão Hegel “declara a inexistência da História em África subsaariana, ou de sua insignificância para a humanidade (OLIVA, 2003). África, aqui, é condenada ao esquecimento e à inferioridade” (LIMA, 2017, p. 41).

     O filósofo alemão elaborou todo um sistema de pensamento que tem na razão o sentido fundante da história e que compreende que a história universal é um processo racional. Temos aqui uma filosofia da história que parte do princípio de que toda a realidade é governada por uma razão histórica. Mas a concepção de Estado que se tem é aquela ocidental. Como entender então a compreensão negativa de Hegel em relação aos povos africanos? É porque para o filósofo alemão

só fazem parte da história universal os povos que constituíram um Estado, europeiamente definido. Por conseguinte, se os povos não têm Estado, não tem História, e não devem fazer parte da História Universal, pelo simples fato de serem pré-históricos e, por isso, não conseguem despertar nenhum interesse à filosofia da história (LIMA, 2017, p. 43).

        Essa ideia, no entanto, é uma construção epistemológica elaborada a partir da visão dominante do povo europeu baseada na racionalidade e na ideia de progresso iluminista, expressa na seguinte passagem:

A principal característica dos negros é que sua consciência não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com sua própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência [...] O negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos de sentimento, para realmente compreendê-lo [...] Com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar (HEGEL, 1995, p. 84-88 apud LIMA, 2017, p. 44).

        Ao contrário dessa visão negativa dos povos africanos, vemos no século XXI todo um esforço de contribuição para a valorização do saber dos povos africanos com a promulgação, em 09 de janeiro de 2003, da lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases, incluindo a história do povo negro no currículo da rede de ensino no Brasil e é sobre ela que iremos tratar agora.

 

A Lei 10.639/03

        A Lei 10.639 de 2003 vem preencher uma lacuna na reconstrução da identidade do povo brasileiro, um povo miscigenado, formado por diferentes povos, culturas e valores. Embora a escola tradicional apresente a história dos povos negros essencialmente vinculados ao processo de escravidão no Brasil, é preciso salientar que essa história se inicia muito antes dos africanos serem submetidos à condição de escravo. Ao contrário do que possam afirmar historiadores convencionais de visão curta e superficial entendimento, a história dos povos negros não se inicia com o tráfico de escravos e muito menos com os primórdios da escravidão.

        A Lei 10.639 possibilita então a inserção de discussões pertinentes às questões raciais e consequentemente uma mudança no conteúdo curricular do estudo da história e cultura afro-brasileira, ressaltando a “cultura africana como constituinte e formadora da sociedade, na qual os negros são considerados sujeitos históricos [...] valorizando, portanto, a contribuição dos povos africanos na história” (PONTES, 2017, p. 23-24).

        A filosofia não pode ficar indiferente a este conhecimento. “A obrigatoriedade da Lei 10.639/2003 é transversal a todas as áreas do conhecimento, assim a filosofia não foge da obrigatoriedade em implementá-la” (MACHADO, 2019, p. 66).

        Quando se trata da História da Filosofia, não encontramos nenhuma referência aos povos africanos, por isso, precisamos repensar e até reescrever a História da Filosofia, como pondera Noguera (2014, p. 84), ampliando o horizonte filosófico para incluir o continente africano: “Do contrário, o risco de uma história parcial (ocidental) da filosofia ser tomada como sinônimo da historiografia filosófica universal é muito alto, dando uma falsa impressão para estudantes do ensino médio”. Quando falamos em filosofia, a perspectiva é a de um conhecimento profundamente ocidental e, em alguns casos, até questionando a existência de outras filosofias.

        Considerando o escopo da lei 10.639/03 é possível pensar o papel da filosofia a partir de temas ligados ao exercício da cidadania, política da igualdade e ética da identidade. Mais uma vez o professor Noguera (2014, p. 85) ressalta como aspectos que podem ser trabalhos pela filosofia uma política que nos ajude a pensar questões étnico-raciais, uma ética que combata todo e qualquer tipo de discriminação, inclusive as enderençadas aos grupos étnico-raciais, além de uma estética plural e antirracista.

        A filosofia como um pensar crítico, questionador, que tem como compromisso possibilitar a reflexão sobre temas inerentes a nossa própria existência, não pode permanecer indiferente às questões étnico-raciais. Pois a existência humana não é aquela apenas dos povos brancos, mas de todos e todas, independente de cor, raça ou sexo. “Seria oportuno que a filosofia tomasse para si a responsabilidade de operar a razão crítica do epistemicídio, garantindo reflexões comprometidas e salutares na luta antirracista” (PONTES, 2017, p. 44).

        Tomada em seu sentido etimológico de amor a sabedoria (philos = amor/amizade; sophia = sabedoria), não há nenhum argumento lógico ou racional que possa negar a ideia de que todos os povos têm sabedoria.

Todos os seres humanos adquiriram, e continuam a adquirir sabedoria ao longo de diferentes rotas nutridas pela experiência e nela fundadas. Neste sentido, a filosofia existe em todo lugar. Ela seria onipresente e pluriversal, apresentando diferentes faces e fases decorrentes de experiências humanas particulares (RAMOSE, 2011, p. 8-9).

 

Colonização e Descolonização do Pensamento

        Sabemos o quanto a história da humanidade está alicerçada em um processo de colonização do assim chamado terceiro mundo. Esse processo, no entanto, não é apenas geopolítico, de dominação por terras, é também ideológico, social, cultural. Nesse sentido, podemos falar de uma colonização do pensamento, dentre os quais os povos africanos e latino americanos foram, sem dúvida, um dos mais afetados.

O colonialismo reserva ao ser africano um lugar cristalizado de inferioridade, não permitindo identificar seu protagonismo sobre si mesmo. A estratégia de alienação mental à qual os povos africanos foram submetidos permite ao colonizador a possibilidade de arquitetar os passos mentais que o colonizado se predispõe a trilhar (PONTES, 2017, p. 63).

         O colonizador branco europeu impõe como referência de verdade a visão de mundo eurocêntrica, afetando diretamente os saberes próprios dos povos colonizados. Aqui temos mais uma vez a faceta do epistemicídio. A colonização do pensamento implica em uma perpetuação do “pensamento ocidental (brancocêntrico, falocêntrico, machista, patriarcal) como régua para as construções epistemológicas em todo e qualquer lugar” (MACHADO, 2019, p. 72).

        O contraponto da colonização é a descolonização e aqui iremos enfatizar sobretudo a descolonização do pensamento, onde merece destaque as ideias do filósofo martinicano Frantz Fanon, autor da obra Os Condenados da Terra.

Fanon (2011) propõe uma ruptura com o modelo referencial de colonização. Após apresentar aos povos africanos, em ato denunciatório, a arquitetura colonial, pensa que o caminho seguro e pontual para a libertação será pela descolonização do pensamento, aquele que não mais buscará referências no ideal branco eurocêntrico, superando a lógica colonial, em situações nas quais os colonizados empreendessem força material capaz de abalar as forças sociais, físicas e mentais do colonizador, fazer nascer diante dessa ação um novo homem, livre do pensamento colonizado... (PONTES, 2017, p. 63).

            A descolonização do pensamento implica em mudar o modo de ver e enxergar o mundo. Não se pode olhar para o mundo apenas sob a ótica europeia, ocidental, que deixa de ser o protagonismo do saber, baseado em uma lógica de dominação colonial, neutralizando outras epistemologias.

        Descolonizar o pensamento significa reorientar as diferentes culturas e os diferentes povos como protagonistas de suas histórias, desenvolvendo uma posição epistemológica própria, e não apenas o ponto de vista eurocêntrico que atribui aos diferentes povos, incluindo aí os povos africanos, um lugar marginalizado na história.

        Como forma de descolonizar o pensamento, alguns autores propõem o conceito de pluriversalidade ou pluriverso, que implica a inclusão de várias (pluri) formas de pensar e universos culturais: “[...] existem vários universos culturais, não existe um sistema único organizado em centro e periferias, mas um conjunto de sistemas policêntricos em que centro e periferias são contextuais, relativos e politicamente construídos” (NOGUERA, 2014, p. 33-34).

        No caso dos povos africanos, fala-se então de um paradigma denominado de afrocentricidade. Dentre os articuladores desse paradigma temos o professor Molefe Kete Asante, que define a afrocentricidade da seguinte forma:

A ideia afrocêntrica refere-se essencialmente à proposta epistemológica do lugar. Tendo sido os africanos deslocados em termos culturais, psicológicos, econômicos e históricos, é importante que qualquer avaliação de suas condições em qualquer país seja feita com base em uma localização centrada na África e sua diáspora. Começamos com a visão de que a afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômenos atuando sobre a sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses humanos (ASANTE, 2009a, p. 93 apud PONTES, 2017, p. 66).

         Do ponto de vista político, social, cultural, religioso, a hegemonia tem sido aquela do continente Europeu. Prevalecem questões políticas, sociais, culturais e religiosas europeias, inferiorizando e marginalizando os valores dos demais continentes. A afrocentricidade significa reorientar a história dos povos africanos, tomando não mais a cultura europeia, mas os valores africanos como centro de sua própria história e, inclusive, pensar uma filosofia africana, em torno da qual podemos destacar a filosofia e prática do ubuntu que, segundo Ramose (2011, p. 17): “exprime a filosofia praticada pelos povos da África falantes do Bantu”. De acordo com a concepção filosófica do ubuntu, o mundo é formado de coisas que “não tem a fixidez e inflexibilidade que acreditamos que elas tenham. As coisas são mutáveis e em movimento na Terra, no céu, em baixo d’água, etc. A Terra e o céu, eles mesmos se movem” (RAMOSE, 2011, p. 17).

        O missionário belga que atuou no Congo, Placide Tempels, é o autor da obra “La Philosophie Bantoue, publicada em 1945, onde argumenta que o povo da África Subsaariana (Povo Banto), região do Congo Belga, tem uma filosofia distinta, descrevendo, então, as bases dessa epistemologia” (MACHADO, 2017, p. 80). Do ponto de vista da Filosofia Bantu, “o fundamento do universo, o seu valor supremo é a vida, é a força que impulsiona e que emana dela, todos os seres são forças e em qualquer situação se deve, ininterruptamente, procurar acrescentar força à vida e ao universo, essa força é chamada de Força Vital” (MACHADO, 2017, p. 80). Bantu é um conceito filosófico que pode ser entendido como “natureza última do ser” (TEMPLS, 1952 apud LIMA, 2017, p. 69).

 

Correntes Filosóficas Africanas

        Não teremos condições aqui de abordar todos os aspectos sobre os quais podem versar, ou versam, o pensamento africano a partir de uma perspectiva filosófica. Por isso selecionamos alguns pontos que podem ser considerados, tais como (MACHADO, 2019): uma etnofilosofia, sagacidade filosófica, filosofia política, filosofia profissional, filosofia artística, filosofia feminista.

        A etnofilosofia tem como tema fundamental a cultura. Busca extrair um conteúdo filosófico a partir das diferentes esferas culturais. Etnofilosofia é um termo derivado da etnologia, cunhado pela Antropologia que visa estudar sobretudo os povos chamados de primitivos e suas culturas. Para a etnofilosofia,

[...] a cultura, apresenta-se como uma abordagem que considera a sabedoria coletiva como lugar ontológico de visão de mundo de comunidades africanas ou grupos étnicos que tem como códigos pensamentos que são considerados filosóficos. É um sistema de pensamento que tratará as diversas cosmopercepções de povos africanos como forma de conhecimento privilegiada, baseando-se na sabedoria dos povos com seus mitos, ritos, provérbios, contos e suas práticas rituais, buscando demonstrar a racionalidade existente nessas categorias (MACHADO, 2019, p. 79).

         A obra Filosofia Bantu, de Placide Tempels, é considerada como base da etnofilosofia, pois o padre belga “buscou entender os aspectos dos costumes do povo bantu, incluindo suas peculiaridades religiosas, mágicas, morais, jurídicas, antropológicas que estão envolvidas naquilo que ele denomina de força vital, dando destaque a uma pesquisa densa no campo da ontologia” (LIMA, 2017, p. 70).

        A sagacidade filosófica (filosofia dos sábios) consiste no que podemos chamar de saberes dos povos tradicionais ou saber popular, ou seja, baseia-se “na sabedoria e nas tradições dos povos, sendo, basicamente, o reflexo de uma pessoa reconhecida como ‘sábia’ e pensadora dentro da comunidade, uma pessoa conhecedora dos saberes do seu povo, um pensador ou pensadora crítico/a e racional” (MACHADO, 2019, p. 81). É a visão do filósofo queniano Henry Odera Oruka, que destaca a importância de considerar o pensamento expresso por homens e mulheres sábios de qualquer comunidade. A filosofia dos sábios é a forma de pensar e explicar o mundo com base na sabedoria popular, a sabedoria exposta pelos indivíduos dentro de uma comunidade. Dentro desta perspectiva, “o estudo da Filosofia Africana não versa em torno do estudo de obras, mas nas pessoas sábias, homens e mulheres, das comunidades, estabelecendo uma relação da filosofia com as pessoas sábias enraizadas na cultura tradicional e em seu contexto” (MACHADO, 2019, p. 81-82).

        Já a filosofia política está presente em toda e qualquer sociedade. Não se pode considerar, se aceitarmos a visão aristotélica de que o homem é um animal político, que apenas o homem branco europeu tenha essa característica. Todos os povos, de todas as raças, estabeleceram alguma forma de convívio e organização social. No caso dos povos africanos, destaca-se a questão do colonialismo, mas isto não significa que esta seja a única questão a ser tratada no âmbito da filosofia política.

        Não há dúvida de que em face da exploração dos povos africanos se torna necessário e até urgente a desconstrução dos valores impostos pelo colonizador e a consequente afirmação da cultura africana cabendo à filosofia refletir desde a política um projeto de reconstrução nacionalista, emancipatório, de crítica dos regimes ditatoriais, colonialistas e exploratórios: “é uma filosofia comprometida, comportando em si a ideologia, a moral, a religião, as análises sociológicas, assim como a própria política e as literaturas que versam em torno das questões sociais e políticas” (MACHADO, 2019, p. 83). Desconstruir não significa destruir. Desconstruir conceitos, visões de mundo, olhares, significa mudar, transformar, decompor para recompor novamente. Recompor a partir de uma perspectiva inclusiva e não excludente.

        A filosofia profissional, por sua vez, consiste na visão que pensa a filosofia a partir daqueles que são treinados dentro das universidades, que estabelece a relação da filosofia com a academia, onde a análise e a interpretação da realidade, em geral, são aquelas oriundas do saber profissional e acadêmico. É a filosofia institucionalizada dentro das universidades.

        Temos ainda a filosofia feminista que, como o próprio nome já diz, busca valorizar o pensamento feminino das mulheres africanas, em uma sociedade marcadamente patriarcal. Às mulheres, tanto quanto aos homens, cabe colocar para si questões filosóficas como: “Quem somos? O que queremos? Quais caminhos trilhamos? Queremos esses caminhos? O que aprendemos / ensinamos? Encantamos? Nos encantamos? Onde está nosso encantamento?” (MACHADO, 2019, p. 90).

        Já não há mais espaço para pensar a existência humana apenas a partir da lente masculina. As mulheres são seres do mesmo estatuto ontológico que os homens. E no caso das mulheres africanas, “é uma força presente no cotidiano, no nosso falar, dançar, cantar, ouvir, fazer, em nosso paladar, nas religiões de matriz africana, no nosso modo de acolher, ser / fazer” (MACHADO, 2019, p. 94). A mulher africana é comparada com a terra: “é o centro da vida. Da mulher emana a força mágica da criação. Ela é abrigo no período da gestação. É alimento no princípio de todas as vidas. Ela é prazer, calor, conforto de todos os seres humanos na superfície da terra” (CHIZIANE, 2016, p. 8 apud MACHADO, 2019, p. 94).

        São temas como estes e muitos outros que nos permitem então falar de uma filosofia africana.

Pela filosofia Africana! Por pedagogias, currículos e metodologias afrorreferenciadas! Pela pedagogia da ancestralidade! Pela Pretagogia! Pelo Afeto! Pela potência dos saberes ancestrais femininos! Encanto! Bem Viver! Organicidade! Escrevivências! Saberes que nos tecem... (MACHADO, 2019, p. 91).

 

Filósofos Africanos

        Kwame Anthony Appiah nasceu em 1954 e é um pensador criado em duas realidades bem distintas. Filho de uma aristocrata inglesa e de um africano ashanti, de Gana, passou a maior parte da sua infância e da juventude em Kumasi, cidade do povoado de seu pai. Seu pensamento se dá a partir de uma confluência entre filosofia e cultura e o título de sua obra revela isso: Na Casa de Meu Pai: A África na Filosofia da Cultura. Tal obra propõe uma reflexão em torno de questões como: “o que é a África? O que é ser africano? Qual o lugar da raça nesses discursos? Para tanto, aborda o problema das identidades raciais, étnicas e pan-africanas que se constituíram ao longo da história do continente, do período colonial e pós-colonial” (LIMA, 2017, p. 94).

        Achille Mbembe é um filósofo camaronês, nascido em 1957, formado em História e Ciência Política, em Paris. Tem se dedicado aos estudos na área da sociologia, da história e da filosofia, sobretudo a partir das questões de raça. Autor da obra Crítica da Razão Negra, “critica a epistemologia que centraliza a crença que, ao longo dos tempos, tem fundamentado a desigualdade entre os seres humanos: a raça” (LIMA, 2017, p. 111). Ao questionar a ideia de raça que, mais uma vez, considera a Europa como centro de gravidade do mundo, propõe uma nova antropologia filosófica, ou seja, um estudo do ser humano (antropos) sob uma perspectiva filosófica e, consequentemente, o homem africano, que não pode mais ser considerado como uma categoria subalternizada. Ser negro não significa pertencer a uma outra categoria de ser humano.

        Nkolo Foé é um filósofo camaronês, nascido em 1955. Sua área de atuação está centrada nos estudos de filosofia africana que envolve a economia política, globalização, governança, além de temas como estudos de gênero e estudos pós-coloniais, epistemologia e metodologia na área das ciências humanas e sociais. A questão do negro e consequentemente a ideologia por trás de todo o processo de escravidão está presente em suas reflexões. Nkofo Foé considera esta questão significativa, pois

A defesa ou a condenação da escravidão, a legitimidade ou a ilegitimidade do racismo, a tolerância ou a negação do princípio de reciprocidade entre os povos, dependem da inclusão ou da exclusão do Negro na humanidade comum, a aceitação ou a rejeição do Negro como irmão em humanidade (FOÉ, 2013, p. 181 apud LIMA, 2017, p. 133).

         O filósofo camaronês faz ainda uma crítica ao sistema capitalista, por considerar uma ideologia de dominação que se fundamentou sobretudo na escravidão tendo como consequência a expulsão dos povos vencidos da história universal. As exigências do mercado capitalista é um dos principais responsáveis pela permanência da condição dos povos negros. Dessa forma, toda e qualquer dominação e exploração precisa ser desmascarada “pois centralizaram o conceito de raça pela via da naturalização pelo fato de mascararem as desigualdades entre os povos em vista de divisão de classes de ideologia capitalista” (LIMA, 2017, p. 137). A questão da opressão e da servidão é uma questão de exploração de classe, tão presente nas sociedades capitalistas. Ao questionar o sistema político e social vigente, o filósofo camaronês aponta para a necessidade de os povos africanos fazerem parte da agenda do mundo global “sobretudo pelas péssimas condições sociais, econômicas e políticas na qual esses povos por séculos estão submetidos e que o sistema capitalista nos seus vários modos de produção e exploração é peça fundamental dessa construção ideológica” (LIMA, 2017, p. 138).

 

Referências

 

LIMA, Claudia Silva. De uma África sem História e Razão à Filosofia Africana. 149 f. Dissertação (Mestrado em História), Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Maranhão, São Luís-MA, 2017.

MACHADO, Adilbênia Freire. Saberes ancestrais femininos na filosofia africana: poéticas de encantamento para metodologias e currículos afrorreferenciados. 268 f. Tese (Doutorado em Educação), Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza-CE, 2019.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Barão de. O Espírito das Leis. Apresentação Renato Janine Ribeiro. Tradução Cristina Murachco. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

NOGUERA, Renato. O Ensino de Filosofia e a Lei 10.639. Rio de Janeiro: CEAP, 2014.

PONTES, Katiúscia Ribeiro. Kemet, Escolas e Arcádeas: A Importância da Filosofia Africana no Combate ao Racismo Epistêmico e a Lei 10639/03. 93 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia e Ensino), Programa de Pós-graduação em Filosofia e Ensino, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, Rio de Janeiro-RJ, 2017.

RAMOSE, Mogobe B. Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana. Ensaios Filosóficos, v. 4, p. 06-24, out. 2011. Acesso em: 30 out. 2022.

 

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9. O Livro Fronteiras de Saberes traz algumas discussões sobre Cultura, Identidade e a questão Interétnica. Veja os dois primeiros capítulos: Casos de “roubo de sombra” em fronteiras interétnicas: sofrimento mental no Baixo Amazonas; Cultura e identidade na tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru. O livro está disponível para download através do link: Fronteiras de Saberes.

10. O Livro Fazendo Antropologia no Alto Solimões traz uma discussão no capítulo 1 sobre Autoridade antropológica e raça no Brasil. O livro está disponível para download através do link: Fazendo Antropologia no Alto Solimões.

11. O Livro Fazendo Antropologia no Alto Solimões, vol. II traz uma discussão sobre a questão étnica no capítulo 2: Representações sobre o negro na Amazônia: corpos, fronteiras e discrep­âncias O livro está disponível para download através do link: Fazendo Antropologia no Alto Solimões, vol. II

12. O Livro Epifanias da Amazônia traz algumas discussões sobre a questão étnica nos capítulos 7 e 8, respectivamente: Ressemantização e emergência étnica quilombola do Rio Andirá, Barreirinha – AM;  Presença negra: Sociologia das emergências nas toadas de boi bumbá na Amazônia. O livro está disponível para download através do link: Epifanias da Amazônia.

 

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Um site destinado a disponibilizar materiais em língua portuguesa que possam subsidiar pesquisas sobre a filosofia africana e afro-brasileira

Ursúla e outras obras

Edições Câmara, editora da Câmara dos Deputados, lançou uma edição de “Úrsula e outras obras”, de Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira escritora negra do Brasil e a primeira autora de romance abolicionista em toda a língua portuguesa.

Além de “Úrsula e outras obras”, a editora da Câmara oferece diversos outros títulos. O acesso ao acervo da Editora Câmara está disponível em www.livraria.camara.leg.br. O leitor pode comprar os livros físicos ou baixar gratuitamente a obra.